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MARCELO COELHO
Não se é latino-americano impunemente
"Confesse, querida. Você
está me traindo." O marido usa aquele tonzinho calmo
que ela já conhece. "De novo esse
papo, Reginaldo?" Ele insiste. "Está traindo ou não está traindo?"
Ela suspira. Diz, pela milésima
vez, que é fiel.
Reginaldo não está convencido.
"Quero provas, Fabiane. Quero
uma declaração solene de sua
parte." Fabiane repete: "Sou fiel".
Reginaldo muda de tática. "Vai
ser sempre fiel? Nunca vai me
trair com ninguém?" Fabiane
abaixa a cabeça. Ajoelha-se.
"Nunca, Reginaldo." O marido
dá um risinho de triunfo. "Então
escreva. Escreva no papel. Que
não vai me trair nunca."
Fabiane sai de cena, à procura
de papel e tinta, se é que declarações desse tipo se fazem com tinta,
e não com sangue. Reginaldo fica
um pouco mais calmo. Pelo menos até o próximo capítulo da novela.
Mas não era novela o que eu estava vendo na semana passada.
Era uma entrevista coletiva do
ministro Malan, depois de anunciar um pacote para "acalmar o
mercado". Pela milésima vez, autoridades do mundo financeiro
explicavam a Lula o que ele deve
fazer.
Deve dar garantias claras ao
mercado. Deve jurar que não vai
sair da linha. Deve prometer fidelidade irrestrita aos compromissos assumidos. Respeito aos contratos, acima de tudo.
Como acontece sempre que assisto a uma novela, fiquei pensando se todo mundo é idiota ou se
eu é que não estou entendendo
nada do que se passa. Mas me parece estranhíssimo que tudo dependa de uma ou duas frases de
Lula.
Está bem que ele diga: "Não darei o calote, não mudarei as regras do jogo". Claro que, em si, a
frase nada significa. Em 1989,
muita gente votou em Collor, contra Lula, porque Collor jurava
que não ia mexer na poupança. E
foi isso a primeira coisa que Collor fez.
Collor era mais "confiável" do
que Lula. Deu no que deu, mas
nem por isso Lula se tornou "confiável". Ele não é "confiável" e
ponto. Ora, se ele não é confiável
de nascença, por que alguém iria
acreditar nos compromissos dele?
Não adianta: as juras de Fabiane não satisfazem Reginaldo. Reginaldo não quer ficar calmo;
quer é ver Fabiane desesperada,
de joelhos, fazendo novas juras,
que ele vai menosprezar.
A situação é de novela mexicana e, às vezes, o ministro da Fazenda -com toda a sua distinção acadêmica e senhorial- deixa que seus olhos filtrem a essência vingativa de uma divindade
asteca.
Não se é latino-americano impunemente. Aliás, as exigências
do mercado ao candidato do PT
evocam não apenas uma novela
ou os folhetins de Nelson Rodrigues, mas também outro modelo:
o da confissão extraída sob tortura. Há como que o ímpeto sádico
de fazer que Lula se dobre e se humilhe diante das ameaças de
qualquer entrevistador, de qualquer comentarista econômico.
Nesse ponto, as coisas para mim
ficam ainda mais difíceis de entender. O candidato favorito nas
pesquisas está forçado, é claro, a
fazer concessões, a pensar em governabilidade e a usar de pragmatismo.
Fico em dúvida se uma aliança
de Lula com Quércia ou com o PL
ajuda nessa direção. Mostra muita flexibilidade, não há dúvida; só
não sei se flexibilidade no lado
certo. Não é com o apoio de um
empresário do setor têxtil ou de
um político avesso a purismos
doutrinários que Lula conquistará a confiança dos investidores. E
como haveria de conquistá-la, se
há outros candidatos mais vocacionados para isso?
O que se desenvolve, sobretudo,
é um espetáculo de poder. Desfruta-se da transformação de Lula;
uma personagem antes ameaçadora e descontente começa a
aprender "o que é bom para a tosse" -nem que sejam charutos de
primeira qualidade- e é obrigado a recitar, como um aluno de
escola, suas promessas de bom
comportamento.
Exorciza-se não a ameaça de
um grande colapso econômico
-coisa que pode acontecer, creio,
com qualquer outro candidato-,
mas a idéia de uma alternativa
ao modelo em vigor.
"Viram?", diz o torturador exibindo sua vítima. "Aqui comigo
acaba toda valentia." Apresenta
também a sala de interrogatórios
e declara: "Este é o mundo real".
É para convencer-se disso -de
sua capacidade de humilhar e de
abater os antigos adversários do
neoliberalismo- que o mercado
exige de Lula novas "garantias".
Sabe que nem Lula nem ninguém
pode oferecê-las. Mas também sabe que Lula ou os economistas do
PT em romaria por Washington
podem oferecer outra coisa: o espetáculo, aliás bastante reprisado
na América Latina, em que somos informados a respeito de
quem manda por aqui.
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