São Paulo, quarta-feira, 19 de junho de 2002

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MARCELO COELHO

Não se é latino-americano impunemente

"Confesse, querida. Você está me traindo." O marido usa aquele tonzinho calmo que ela já conhece. "De novo esse papo, Reginaldo?" Ele insiste. "Está traindo ou não está traindo?" Ela suspira. Diz, pela milésima vez, que é fiel.
Reginaldo não está convencido. "Quero provas, Fabiane. Quero uma declaração solene de sua parte." Fabiane repete: "Sou fiel". Reginaldo muda de tática. "Vai ser sempre fiel? Nunca vai me trair com ninguém?" Fabiane abaixa a cabeça. Ajoelha-se. "Nunca, Reginaldo." O marido dá um risinho de triunfo. "Então escreva. Escreva no papel. Que não vai me trair nunca."
Fabiane sai de cena, à procura de papel e tinta, se é que declarações desse tipo se fazem com tinta, e não com sangue. Reginaldo fica um pouco mais calmo. Pelo menos até o próximo capítulo da novela.
Mas não era novela o que eu estava vendo na semana passada. Era uma entrevista coletiva do ministro Malan, depois de anunciar um pacote para "acalmar o mercado". Pela milésima vez, autoridades do mundo financeiro explicavam a Lula o que ele deve fazer.
Deve dar garantias claras ao mercado. Deve jurar que não vai sair da linha. Deve prometer fidelidade irrestrita aos compromissos assumidos. Respeito aos contratos, acima de tudo.
Como acontece sempre que assisto a uma novela, fiquei pensando se todo mundo é idiota ou se eu é que não estou entendendo nada do que se passa. Mas me parece estranhíssimo que tudo dependa de uma ou duas frases de Lula.
Está bem que ele diga: "Não darei o calote, não mudarei as regras do jogo". Claro que, em si, a frase nada significa. Em 1989, muita gente votou em Collor, contra Lula, porque Collor jurava que não ia mexer na poupança. E foi isso a primeira coisa que Collor fez.
Collor era mais "confiável" do que Lula. Deu no que deu, mas nem por isso Lula se tornou "confiável". Ele não é "confiável" e ponto. Ora, se ele não é confiável de nascença, por que alguém iria acreditar nos compromissos dele?
Não adianta: as juras de Fabiane não satisfazem Reginaldo. Reginaldo não quer ficar calmo; quer é ver Fabiane desesperada, de joelhos, fazendo novas juras, que ele vai menosprezar.
A situação é de novela mexicana e, às vezes, o ministro da Fazenda -com toda a sua distinção acadêmica e senhorial- deixa que seus olhos filtrem a essência vingativa de uma divindade asteca.
Não se é latino-americano impunemente. Aliás, as exigências do mercado ao candidato do PT evocam não apenas uma novela ou os folhetins de Nelson Rodrigues, mas também outro modelo: o da confissão extraída sob tortura. Há como que o ímpeto sádico de fazer que Lula se dobre e se humilhe diante das ameaças de qualquer entrevistador, de qualquer comentarista econômico.
Nesse ponto, as coisas para mim ficam ainda mais difíceis de entender. O candidato favorito nas pesquisas está forçado, é claro, a fazer concessões, a pensar em governabilidade e a usar de pragmatismo.
Fico em dúvida se uma aliança de Lula com Quércia ou com o PL ajuda nessa direção. Mostra muita flexibilidade, não há dúvida; só não sei se flexibilidade no lado certo. Não é com o apoio de um empresário do setor têxtil ou de um político avesso a purismos doutrinários que Lula conquistará a confiança dos investidores. E como haveria de conquistá-la, se há outros candidatos mais vocacionados para isso?
O que se desenvolve, sobretudo, é um espetáculo de poder. Desfruta-se da transformação de Lula; uma personagem antes ameaçadora e descontente começa a aprender "o que é bom para a tosse" -nem que sejam charutos de primeira qualidade- e é obrigado a recitar, como um aluno de escola, suas promessas de bom comportamento.
Exorciza-se não a ameaça de um grande colapso econômico -coisa que pode acontecer, creio, com qualquer outro candidato-, mas a idéia de uma alternativa ao modelo em vigor.
"Viram?", diz o torturador exibindo sua vítima. "Aqui comigo acaba toda valentia." Apresenta também a sala de interrogatórios e declara: "Este é o mundo real".
É para convencer-se disso -de sua capacidade de humilhar e de abater os antigos adversários do neoliberalismo- que o mercado exige de Lula novas "garantias". Sabe que nem Lula nem ninguém pode oferecê-las. Mas também sabe que Lula ou os economistas do PT em romaria por Washington podem oferecer outra coisa: o espetáculo, aliás bastante reprisado na América Latina, em que somos informados a respeito de quem manda por aqui.



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