São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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"INOCÊNCIA"/"ELE, O BOTO"

Lima Jr. vira cúmplice da natureza

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Inocência" e "Ele, o Boto" compõem um conjunto de filmes dedicados à natureza de Walter Lima Jr., que talvez se feche com "A Ostra e o Vento" (97).
Convém distingui-los desde logo, porém, dos filmes de exploração da natureza, que existem às pilhas. A natureza, aqui, é antes de tudo uma escuta, como bem relata Carlos Alberto de Mattos em seu imperdível "Walter Lima Jr. -°Viver Cinema". Durante a filmagem, Lima Jr. pedia silêncio: quando não é ouvida, a natureza se contrai e se esconde -explicava o diretor, bem à maneira de seu mestre Humberto Mauro.
Parece um pouco maníaco, mas quem vê o filme percebe desde o início que a natureza é uma cúmplice das filmagens que ele concebeu em conjunto com seu fotógrafo, Pedro Farkas. Farkas, aliás, será dali em diante parceiro obrigatório do diretor e também assina a fotografia de "Ele, o Boto".
Em "Inocência" existe ainda a sombra do "grande tema", da adaptação literária de prestígio (o romance original é do visconde de Taunay). "Ele, o Boto" sustenta-se basicamente de uma série de lendas a respeito do peixe que sai das águas para habitar o sonho das mulheres (no livro, Mattos sugere que esse mito teria origem indígena, dizendo respeito ao homem loiro que chegava pela água para seduzir suas mulheres).
Nos dois filmes, o imaginário e a sensualidade são convocados em último grau. Em "Inocência", o amor entre a garota e o médico que lhe salva sofre de um interdito claro: Inocência está prometida. Há um interdito menos evidente: a natureza incestuosa do pai da garota, que parece pesar mais do que a palavra empenhada.
Na trajetória de "Inocência", a natureza é cúmplice da natureza humana, e daí vem o caráter poético do filme: a primeira é o que é -nem boa nem má-; a segunda é frágil, imperfeita. É a essa fragilidade que o filme parece cantar.
"Ele, o Boto" se alimenta do improviso, e talvez seja este o seu ponto forte. Exemplo (do livro ainda): a dança do "Arara", uma das melhores partes do filme, só está lá porque a coreografia original não deu certo. O filme tem muito dessa vagabundagem que alimenta a mitologia do boto.
Desta vez não existe o "grande tema", mas estamos no que Lima Jr. qualifica como um cinema que não pretende mudar nada, que se contenta em ser, em levar a beleza ao público. Uma beleza que marca os anos 80 brasileiros com um filme mais classicizante (porém moderno), como "Inocência", e outro de estrutura mais livre (nem por isso desprovido de rigor clássico), como "Ele, o Boto".


Ele, o Boto/Inocência
    
Direção: Walter Lima Jr.
Distribuidora: Paramount; R$ 30, em média (cada DVD)



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