São Paulo, terça-feira, 19 de junho de 2007

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BERNARDO CARVALHO

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"Não por Acaso", de Philippe Barcinski, não é um filme realista e não deve ser julgado como tal

TALVEZ POR sugestão do título (e por estarem informadas pelos curtas de estrutura quase matemática realizados anteriormente pelo cineasta), algumas críticas condenaram a ausência de acaso no primeiro longa-metragem de Philippe Barcinski, "Não por Acaso". É preciso dizer que o acaso praticamente inexiste no cinema atual, em qualquer lugar do mundo -e que, se sobrevive, é mais como impressão do que como realidade. É claro que pequenos detalhes imprevisíveis sempre escaparam (embora cada vez menos) ao controle da imagem fotográfica, pela própria especificidade do meio. Mas, em geral, quando você acha um filme mais espontâneo do que outros, isso costuma ser efeito de um cálculo de produção. Sobretudo num mundo de imagens digitais e realidades virtuais. De modo que não faz sentido dizer que falta acaso a um filme. O que falta é a impressão de acaso. E, nesse sentido, o filme ao qual ela faz falta pode ser bem menos manipulador e ilusionista do que aquele em que tudo parece ter sido criado espontaneamente.
O que talvez mais incomode em "Não por Acaso" é o fato de o diretor deixar visível a idéia, o esquema, a estrutura dramática, e usar abertamente o artifício e o cálculo para falar do que só pode ser representado pela falta: a morte. É esse o fundamento e o limite de toda encenação: o real só pode ser representado pelo que não é real. O maior pecado do filme talvez seja afirmar isso com todas as letras.
É verdade que há problemas pontuais: embora o roteiro seja notável, alguns diálogos são sofríveis; os atores em geral estão ótimos (com destaque para Rita Batata e Leonardo Medeiros), mas há deslizes eventuais na sua direção; a música às vezes é excessiva; e, principalmente, embora seja original e ousado, de vez em quando o projeto esbarra numa forma radicalmente contrária à sua originalidade, que faz lembrar o lugar-comum e o artificialismo do padrão de interpretação da novela "de qualidade" da televisão brasileira. Dito isto, é preciso fazer justiça: "Não por Acaso" não é um filme qualquer. Na verdade, é um filme bastante incomum. A começar pela façanha de manter o espectador num estado emocionado permanente e insustentável, com lágrimas nos olhos.
A meio caminho, você entende do que trata a história: em linhas paralelas, dois homens, devastados pela morte de alguém muito próximo e querido, tentam evitar uma segunda perda. "Não por Acaso" não é um filme realista e não deve ser julgado como tal. Há uma série de licenças poéticas. E grande parte da beleza vem justamente de como ele se serve delas para representar a luta de personagens tocados pela morte, tentando preservar o que lhes restou, ao mesmo tempo resignados e desesperados, se debatendo contra o inevitável, que é o que todo mundo faz a vida inteira. Uma luta que só pode ser vencida por meio de um pensamento mítico ou, na falta deste, no âmbito de um pensamento poético, como no filme. Por exemplo: um engenheiro de trânsito vigia de longe a livraria onde trabalha a filha. Como um anjo da guarda, ele a observa à distância, por meio de uma câmera improvável, instalada em alguma parte, no alto. E, numa das cenas mais extraordinárias do filme, pára o trânsito da cidade só para revê-la e para impedir uma nova separação.
Passagens como essa fazem parte da tradição das cenas que, no seu excesso inverossímil, traduzem na imagem cinematográfica sentimentos irrepresentáveis por meio do realismo. São cenas improváveis, construídas em forma de apoteose mágica (seriam impossíveis na vida real) e cuja inverossimilhança é proporcional à nossa vontade (e ao nosso prazer) de revê-las e de acreditar nelas. Cenas como a da morta ressuscitada pela palavra, em "Ordet", de Dreyer.
A São Paulo do filme de Barcinski, embora trabalhada digitalmente nos mínimos detalhes, não é uma imagem de publicidade. É um ser vivo que, à maneira do planeta em "Solaris", de Andrei Tarkovski, se comunica com os personagens e que eles, apesar de submetidos aos seus fluxos (a cidade pode matá-los), também são capazes de observar, compreender e manipular à distância. Mas só até os limites da sua humanidade. Se "Não por Acaso" deixa exposta a insuficiência do cálculo e do controle dos personagens (e do próprio filme), se encena o lugar onde a fórmula matemática sempre falha (e a sua superação por meio de uma imagem poética), é para mostrar a dor desses limites e exaltar a condição trágica da consciência de não poder vencê-los.


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