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BERNARDO CARVALHO
Perder
"Não por Acaso", de Philippe Barcinski, não é um filme realista e não deve ser julgado como tal
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TALVEZ POR sugestão do título
(e por estarem informadas
pelos curtas de estrutura quase matemática realizados anteriormente pelo cineasta), algumas críticas condenaram a ausência de acaso
no primeiro longa-metragem de
Philippe Barcinski, "Não por Acaso". É preciso dizer que o acaso praticamente inexiste no cinema atual,
em qualquer lugar do mundo -e
que, se sobrevive, é mais como impressão do que como realidade. É
claro que pequenos detalhes imprevisíveis sempre escaparam (embora
cada vez menos) ao controle da imagem fotográfica, pela própria especificidade do meio. Mas, em geral,
quando você acha um filme mais espontâneo do que outros, isso costuma ser efeito de um cálculo de produção. Sobretudo num mundo de
imagens digitais e realidades virtuais. De modo que não faz sentido
dizer que falta acaso a um filme. O
que falta é a impressão de acaso. E,
nesse sentido, o filme ao qual ela faz
falta pode ser bem menos manipulador e ilusionista do que aquele em
que tudo parece ter sido criado espontaneamente.
O que talvez mais incomode em
"Não por Acaso" é o fato de o diretor
deixar visível a idéia, o esquema, a
estrutura dramática, e usar abertamente o artifício e o cálculo para falar do que só pode ser representado
pela falta: a morte. É esse o fundamento e o limite de toda encenação:
o real só pode ser representado pelo
que não é real. O maior pecado do filme talvez seja afirmar isso com todas as letras.
É verdade que há problemas pontuais: embora o roteiro seja notável,
alguns diálogos são sofríveis; os atores em geral estão ótimos (com destaque para Rita Batata e Leonardo
Medeiros), mas há deslizes eventuais na sua direção; a música às vezes é excessiva; e, principalmente,
embora seja original e ousado, de
vez em quando o projeto esbarra numa forma radicalmente contrária à
sua originalidade, que faz lembrar o
lugar-comum e o artificialismo do
padrão de interpretação da novela
"de qualidade" da televisão brasileira. Dito isto, é preciso fazer justiça:
"Não por Acaso" não é um filme
qualquer. Na verdade, é um filme
bastante incomum. A começar pela
façanha de manter o espectador
num estado emocionado permanente e insustentável, com lágrimas
nos olhos.
A meio caminho, você entende do
que trata a história: em linhas paralelas, dois homens, devastados pela
morte de alguém muito próximo e
querido, tentam evitar uma segunda
perda. "Não por Acaso" não é um filme realista e não deve ser julgado
como tal. Há uma série de licenças
poéticas. E grande parte da beleza
vem justamente de como ele se serve delas para representar a luta de
personagens tocados pela morte,
tentando preservar o que lhes restou, ao mesmo tempo resignados e
desesperados, se debatendo contra
o inevitável, que é o que todo mundo
faz a vida inteira. Uma luta que só
pode ser vencida por meio de um
pensamento mítico ou, na falta deste, no âmbito de um pensamento
poético, como no filme. Por exemplo: um engenheiro de trânsito vigia
de longe a livraria onde trabalha a filha. Como um anjo da guarda, ele a
observa à distância, por meio de
uma câmera improvável, instalada
em alguma parte, no alto. E, numa
das cenas mais extraordinárias do
filme, pára o trânsito da cidade só
para revê-la e para impedir uma nova separação.
Passagens como essa fazem parte
da tradição das cenas que, no seu excesso inverossímil, traduzem na
imagem cinematográfica sentimentos irrepresentáveis por meio do
realismo. São cenas improváveis,
construídas em forma de apoteose
mágica (seriam impossíveis na vida
real) e cuja inverossimilhança é proporcional à nossa vontade (e ao nosso prazer) de revê-las e de acreditar
nelas. Cenas como a da morta ressuscitada pela palavra, em "Ordet",
de Dreyer.
A São Paulo do filme de Barcinski,
embora trabalhada digitalmente
nos mínimos detalhes, não é uma
imagem de publicidade. É um ser vivo que, à maneira do planeta em
"Solaris", de Andrei Tarkovski, se
comunica com os personagens e que
eles, apesar de submetidos aos seus
fluxos (a cidade pode matá-los),
também são capazes de observar,
compreender e manipular à distância. Mas só até os limites da sua humanidade. Se "Não por Acaso" deixa
exposta a insuficiência do cálculo e
do controle dos personagens (e do
próprio filme), se encena o lugar onde a fórmula matemática sempre falha (e a sua superação por meio de
uma imagem poética), é para mostrar a dor desses limites e exaltar a
condição trágica da consciência de
não poder vencê-los.
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