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"O sofrimento latino é mais barroco"
Regina José Galindo, da Guatemala, mostra registros de suas performances sangrentas em exposição em São Paulo
Artista expõe trabalhos com a espanhola Pilar Albarracín e a brasileira Laura Lima a partir de hoje no Memorial da América Latina
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando o ex-ditador José
Ríos Montt se candidatou à
presidência da Guatemala, Regina José Galindo conseguiu
dois litros de sangue humano.
Encheu uma bacia branca, banhou os pés de vermelho e deixou pegadas sangrentas entre a
Corte e o Palácio Nacional.
Foi a performance que deu
projeção mundial à artista.
Junto de outro trabalho em que
teve o hímen reconstituído numa clínica clandestina de seu
país, Galindo ganhou o Leão de
Ouro para jovens artistas na
Bienal de Veneza em 2005.
Ela volta a expor na cidade
italiana agora, em mostra paralela à Bienal, com "Confesión",
vídeo em que é afogada por um
capataz num barril de água.
Seis registros de suas performances mais relevantes também estão expostos a partir de
hoje, em São Paulo, no Memorial da América Latina, a primeira mostra da artista no país.
Ligando a dor e a exploração
do corpo feminino a questões
políticas, Galindo costuma sofrer em suas obras. É na tensão
entre vítima e algoz que cria
pontos dramáticos e de conflito, alternando entre os papéis
de quem bate e quem apanha.
"Uma vítima de violência é
vítima porque o permitiu até
certo ponto", diz Galindo, 34.
"Meus trabalhos têm uma tensão, em que o público acha que
a artista é vítima, mas esses são
papéis intercambiáveis."
Sua caminhada sangrenta,
mesmo sendo alusão à dor latente, surge nas imagens com
uma placidez estranha. Galindo parece ter sempre o comando da situação, deixando vazar
a violência -com jorros de sangue- só nas notas mais agudas
de suas composições visuais.
"A anedota por trás de tudo
enriquece a obra, mas é sempre
um trabalho visual", diz ela.
Quando começaram a surgir
cadáveres de mulheres mutiladas na Guatemala, Galindo respondeu com uma performance
em que retalhava na própria coxa a palavra "perra". No vídeo,
parece fazer os cortes como
quem desenha sobre papel.
"Se estou trabalhando com o
corpo, tenho que saber do que
ele é feito", diz Galindo. "É a
ideia de marcas, cortes na pele,
mas não me interessa a dor."
Tanto que abstrai o sofrimento. Em "(279) Golpes",
obra sonora, não há sangue,
nem cores. Só estalos agudos
intercalados entre os versos de
"Je Ne Regrette Rien", na voz
de Edith Piaf. É disfarce para o
som de chibatadas com um cinto de couro que ela desfere contra o próprio corpo com a mesma frieza dos cortes de "Perra".
Mesmo que a trilha sonora
ou certo cinismo discreto possam quebrar o ritmo e baixar o
tom, causando uma impressão
até pueril, seus esforços resultam desconcertantes. Por mais
ingênua e literal que seja "Limpieza Social", performance em
que a artista nua é alvejada por
um jato de água usado para
conter manifestações, existe ali
um frescor formal contudente.
Talvez pelo apelo dos músculos molhados depois do açoite,
a pose agachada, inerte. Nesse
ponto, a voz de Piaf e a nudez da
artista dão o verniz da forma a
uma obra que se recusa a ser só
política, que busca, nem sempre com muito sucesso, romper
com o panfletarismo simplório.
"Cansei de ser a artista do
Terceiro Mundo que vem contar suas misérias, não quero ser
exotizada", diz Galindo. "O sofrimento na América Latina é,
de fato, mais barroco, mas me
parece que o mundo está fodido
igual em todas as partes."
Sofrimento flamenco
Do outro lado do Atlântico,
Pilar Albarracín, que também
tem trabalhos no Memorial, explora a dor espanhola. Ela busca nos estereótipos e clichês da
mulher andaluz a embalagem
plástica de suas performances.
Numa delas, cava a própria
cova e se joga lá dentro. Outro
vídeo mostra um paso doble em
que vai alfinetando o próprio
corpo, manchando de sangue
seu vestido branco de bailarina.
REGINA JOSÉ GALINDO
Quando: ter. a dom., 9h às 18h
Onde: Memorial da América Latina (av.
Auro Soares de Moura Andrade, 664)
Quanto: entrada franca; 14 anos
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