São Paulo, sexta-feira, 19 de junho de 2009

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"O sofrimento latino é mais barroco"

Regina José Galindo, da Guatemala, mostra registros de suas performances sangrentas em exposição em São Paulo

Artista expõe trabalhos com a espanhola Pilar Albarracín e a brasileira Laura Lima a partir de hoje no Memorial da América Latina


SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando o ex-ditador José Ríos Montt se candidatou à presidência da Guatemala, Regina José Galindo conseguiu dois litros de sangue humano. Encheu uma bacia branca, banhou os pés de vermelho e deixou pegadas sangrentas entre a Corte e o Palácio Nacional. Foi a performance que deu projeção mundial à artista.
Junto de outro trabalho em que teve o hímen reconstituído numa clínica clandestina de seu país, Galindo ganhou o Leão de Ouro para jovens artistas na Bienal de Veneza em 2005.
Ela volta a expor na cidade italiana agora, em mostra paralela à Bienal, com "Confesión", vídeo em que é afogada por um capataz num barril de água. Seis registros de suas performances mais relevantes também estão expostos a partir de hoje, em São Paulo, no Memorial da América Latina, a primeira mostra da artista no país.
Ligando a dor e a exploração do corpo feminino a questões políticas, Galindo costuma sofrer em suas obras. É na tensão entre vítima e algoz que cria pontos dramáticos e de conflito, alternando entre os papéis de quem bate e quem apanha.
"Uma vítima de violência é vítima porque o permitiu até certo ponto", diz Galindo, 34. "Meus trabalhos têm uma tensão, em que o público acha que a artista é vítima, mas esses são papéis intercambiáveis."
Sua caminhada sangrenta, mesmo sendo alusão à dor latente, surge nas imagens com uma placidez estranha. Galindo parece ter sempre o comando da situação, deixando vazar a violência -com jorros de sangue- só nas notas mais agudas de suas composições visuais. "A anedota por trás de tudo enriquece a obra, mas é sempre um trabalho visual", diz ela.
Quando começaram a surgir cadáveres de mulheres mutiladas na Guatemala, Galindo respondeu com uma performance em que retalhava na própria coxa a palavra "perra". No vídeo, parece fazer os cortes como quem desenha sobre papel. "Se estou trabalhando com o corpo, tenho que saber do que ele é feito", diz Galindo. "É a ideia de marcas, cortes na pele, mas não me interessa a dor."
Tanto que abstrai o sofrimento. Em "(279) Golpes", obra sonora, não há sangue, nem cores. Só estalos agudos intercalados entre os versos de "Je Ne Regrette Rien", na voz de Edith Piaf. É disfarce para o som de chibatadas com um cinto de couro que ela desfere contra o próprio corpo com a mesma frieza dos cortes de "Perra".
Mesmo que a trilha sonora ou certo cinismo discreto possam quebrar o ritmo e baixar o tom, causando uma impressão até pueril, seus esforços resultam desconcertantes. Por mais ingênua e literal que seja "Limpieza Social", performance em que a artista nua é alvejada por um jato de água usado para conter manifestações, existe ali um frescor formal contudente.
Talvez pelo apelo dos músculos molhados depois do açoite, a pose agachada, inerte. Nesse ponto, a voz de Piaf e a nudez da artista dão o verniz da forma a uma obra que se recusa a ser só política, que busca, nem sempre com muito sucesso, romper com o panfletarismo simplório.
"Cansei de ser a artista do Terceiro Mundo que vem contar suas misérias, não quero ser exotizada", diz Galindo. "O sofrimento na América Latina é, de fato, mais barroco, mas me parece que o mundo está fodido igual em todas as partes."

Sofrimento flamenco
Do outro lado do Atlântico, Pilar Albarracín, que também tem trabalhos no Memorial, explora a dor espanhola. Ela busca nos estereótipos e clichês da mulher andaluz a embalagem plástica de suas performances. Numa delas, cava a própria cova e se joga lá dentro. Outro vídeo mostra um paso doble em que vai alfinetando o próprio corpo, manchando de sangue seu vestido branco de bailarina.


REGINA JOSÉ GALINDO

Quando: ter. a dom., 9h às 18h
Onde: Memorial da América Latina (av. Auro Soares de Moura Andrade, 664)
Quanto: entrada franca; 14 anos




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