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RESENHA DA SEMANA
Rir de si mesmo
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Já foi dito que o estilo satírico
de Jonathan Swift (1667-1745) é
precursor de várias coisas, do
jornalismo ao romance moderno. Em "As Viagens de Gulliver", o protagonista visita as
sociedades mais distantes (de
seres minúsculos, gigantes, cavalos racionais etc.) para, nesse
"trabalho de campo" literário,
permitir aos seus conterrâneos
ver no outro o ridículo de si
mesmos, em ilhas remotas uma
caricatura da Inglaterra. Uma
antropologia imaginária.
"A sátira é uma espécie de espelho, onde em geral quem se
olha descobre o rosto de todos,
menos o seu; o que é a principal
razão para a boa acolhida com
que o mundo a recebe", diz ele
em "A Batalha dos Livros", um
dos 16 textos reunidos em
"Panfletos Satíricos". Nem por
isso, o autor deixou de publicá-los anonimamente ou sob
pseudônimo -sinal de que,
apesar da sátira, não era tão fácil engoli-los.
Filho de ingleses nascido numa Irlanda colonizada e explorada pelos ingleses, padre anglicano numa Inglaterra em
disputa sucessória entre um rei
católico e uma Constituição
protestante, político engajado
oscilando entre os "whigs" (liberais) e os "tories" (conservadores), homem de letras de formação clássica diante da "querela entre antigos e modernos"
exportada da França, Swift foi
um argumentador mordaz de
suas posições, chegando a criar
com amigos, como Pope, um
clube para combater a burrice.
Por ironia do destino, as peripécias do protagonista de "As
Viagens de Gulliver", escrito
"mais para irritar o mundo do
que para diverti-lo", um ataque
inclemente à totalidade da raça
humana, permitiram que o romance acabasse sendo lido como livro de aventuras e se tornasse um clássico da literatura
infantil.
Não é o caso dos panfletos.
Sem as referências históricas,
podem ser impenetráveis. A
exceção é "Uma Modesta Proposta Para Impedir que os Filhos de Gente Pobre da Irlanda
Sejam um Peso para os seus
Pais ou o País...". Já publicado
no Brasil, em 93, numa edição
bilíngue, pela editora Paraula,
de Porto Alegre, seu deboche
garante, de saída e a despeito
do contexto histórico, uma
universalidade hilariante.
"Um americano muito sabido, do meu conhecimento em
Londres, assegurou-me que
uma criancinha sadia e bem
criada é, com um ano de idade,
o alimento mais delicioso, nutritivo e benéfico que existe, seja cozida, grelhada, assada ou
ferventada; e não duvido de
que sirva igualmente para um
fricassê ou um ragu", ironiza o
texto de 1729.
Como solução para a miséria
da Irlanda, Swift oferece aos colonizadores ingleses uma proposta tão descarada que deixa
explícitas não só as injustiças
desse domínio político como a
hipocrisia da sociedade que o
mantém: "Os homens passariam a gostar tanto das esposas,
durante o tempo de gravidez,
quanto gostam agora de suas
éguas prenhes, das suas vacas
com bezerro ou das porcas que
estão por parir; e não ameaçariam mais espancá-las nem
dar-lhes pontapés (prática hoje
tão frequente), por medo de
um aborto".
Considerado por Harold
Bloom "a melhor prosa da língua (inglesa) depois da de Shakespeare", o célebre panfleto
"Uma História de um Tonel",
que ataca sobretudo a hipocrisia do catolicismo de Roma e o
fanatismo dos puritanos calvinistas, pode parecer chinês para o leitor que desconhece o
contexto da Inglaterra de 1704.
Ainda assim, há passagens que
transcendem os limites históricos, seja pelo escracho, seja pela agudeza da inteligência, como num dos trechos escatológicos, sobre a invenção do confessionário: "Uma terceira invenção foi a construção de uma
cabine para cochichar, destinada ao bem-estar público e ao
alívio de todos os que são hipocondríacos ou incomodados
por cólicas; bem como de todos
os mexeriqueiros, médicos,
parteiras, politiquetes, amigos
rompidos, poetas declamadores, amantes felizes ou em desespero, proxenetas, conselheiros privados, pajens, parasitas
e bufões; em suma, de todos os
que, por um excesso de ventosidade, acham-se em perigo de
explodir".
Os "críticos modernos" também são alvos caros a Swift. Para um escritor satírico, o homem é sempre o mesmo, o progresso ou decadência do espírito humano não está ligado ao
acúmulo, como no caso da técnica e das tecnologias. É, portanto, descabido falar em superioridade artística dos modernos sobre os antigos simplesmente por aqueles terem vindo
depois destes.
No final das contas, ao parodiar o discurso dos que ataca,
Swift termina por não poupar
nem a si próprio: "Da liberdade
que me concedi de elogiar a
mim mesmo, havendo ou não
ocasião para isso, estou certo
de não precisar desculpar-me".
E não existe inteligência maior
do que a que, para fazer a sátira
dos outros, aprendeu antes a
reconhecer-se nesse espelho, e
rir de si mesma.
Avaliação:
Livro: Panfletos Satíricos
Autor: Jonathan Swift
Tradução: Leonardo Fróes
Lançamento: Topbooks
Quanto: R$ 49 (504 págs.)
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