São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Rir de si mesmo

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Já foi dito que o estilo satírico de Jonathan Swift (1667-1745) é precursor de várias coisas, do jornalismo ao romance moderno. Em "As Viagens de Gulliver", o protagonista visita as sociedades mais distantes (de seres minúsculos, gigantes, cavalos racionais etc.) para, nesse "trabalho de campo" literário, permitir aos seus conterrâneos ver no outro o ridículo de si mesmos, em ilhas remotas uma caricatura da Inglaterra. Uma antropologia imaginária.
"A sátira é uma espécie de espelho, onde em geral quem se olha descobre o rosto de todos, menos o seu; o que é a principal razão para a boa acolhida com que o mundo a recebe", diz ele em "A Batalha dos Livros", um dos 16 textos reunidos em "Panfletos Satíricos". Nem por isso, o autor deixou de publicá-los anonimamente ou sob pseudônimo -sinal de que, apesar da sátira, não era tão fácil engoli-los.
Filho de ingleses nascido numa Irlanda colonizada e explorada pelos ingleses, padre anglicano numa Inglaterra em disputa sucessória entre um rei católico e uma Constituição protestante, político engajado oscilando entre os "whigs" (liberais) e os "tories" (conservadores), homem de letras de formação clássica diante da "querela entre antigos e modernos" exportada da França, Swift foi um argumentador mordaz de suas posições, chegando a criar com amigos, como Pope, um clube para combater a burrice.
Por ironia do destino, as peripécias do protagonista de "As Viagens de Gulliver", escrito "mais para irritar o mundo do que para diverti-lo", um ataque inclemente à totalidade da raça humana, permitiram que o romance acabasse sendo lido como livro de aventuras e se tornasse um clássico da literatura infantil.
Não é o caso dos panfletos. Sem as referências históricas, podem ser impenetráveis. A exceção é "Uma Modesta Proposta Para Impedir que os Filhos de Gente Pobre da Irlanda Sejam um Peso para os seus Pais ou o País...". Já publicado no Brasil, em 93, numa edição bilíngue, pela editora Paraula, de Porto Alegre, seu deboche garante, de saída e a despeito do contexto histórico, uma universalidade hilariante.
"Um americano muito sabido, do meu conhecimento em Londres, assegurou-me que uma criancinha sadia e bem criada é, com um ano de idade, o alimento mais delicioso, nutritivo e benéfico que existe, seja cozida, grelhada, assada ou ferventada; e não duvido de que sirva igualmente para um fricassê ou um ragu", ironiza o texto de 1729.
Como solução para a miséria da Irlanda, Swift oferece aos colonizadores ingleses uma proposta tão descarada que deixa explícitas não só as injustiças desse domínio político como a hipocrisia da sociedade que o mantém: "Os homens passariam a gostar tanto das esposas, durante o tempo de gravidez, quanto gostam agora de suas éguas prenhes, das suas vacas com bezerro ou das porcas que estão por parir; e não ameaçariam mais espancá-las nem dar-lhes pontapés (prática hoje tão frequente), por medo de um aborto".
Considerado por Harold Bloom "a melhor prosa da língua (inglesa) depois da de Shakespeare", o célebre panfleto "Uma História de um Tonel", que ataca sobretudo a hipocrisia do catolicismo de Roma e o fanatismo dos puritanos calvinistas, pode parecer chinês para o leitor que desconhece o contexto da Inglaterra de 1704. Ainda assim, há passagens que transcendem os limites históricos, seja pelo escracho, seja pela agudeza da inteligência, como num dos trechos escatológicos, sobre a invenção do confessionário: "Uma terceira invenção foi a construção de uma cabine para cochichar, destinada ao bem-estar público e ao alívio de todos os que são hipocondríacos ou incomodados por cólicas; bem como de todos os mexeriqueiros, médicos, parteiras, politiquetes, amigos rompidos, poetas declamadores, amantes felizes ou em desespero, proxenetas, conselheiros privados, pajens, parasitas e bufões; em suma, de todos os que, por um excesso de ventosidade, acham-se em perigo de explodir".
Os "críticos modernos" também são alvos caros a Swift. Para um escritor satírico, o homem é sempre o mesmo, o progresso ou decadência do espírito humano não está ligado ao acúmulo, como no caso da técnica e das tecnologias. É, portanto, descabido falar em superioridade artística dos modernos sobre os antigos simplesmente por aqueles terem vindo depois destes.
No final das contas, ao parodiar o discurso dos que ataca, Swift termina por não poupar nem a si próprio: "Da liberdade que me concedi de elogiar a mim mesmo, havendo ou não ocasião para isso, estou certo de não precisar desculpar-me". E não existe inteligência maior do que a que, para fazer a sátira dos outros, aprendeu antes a reconhecer-se nesse espelho, e rir de si mesma.


Avaliação:     


Livro: Panfletos Satíricos Autor: Jonathan Swift Tradução: Leonardo Fróes Lançamento: Topbooks Quanto: R$ 49 (504 págs.)

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