São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 2000


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Um dos maiores poetas populares do país, Patativa diz à Folha que não vai mais fazer versos
Patativa do Assaré - Aos 91 anos, poeta passarinho é tema de três novos livros

Carolina Quintanilha/Folha Imagem
O poeta cearense Patativa do Assaré com quatro de suas marcas registradas: chapéu de feltro, óculos escuros, cadeira de palha e cigarro na boca



"Poeta do Povo", biografia com CD do "criador e versejador" cearense, será lançada hoje em SP


CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A ASSARÉ (CE)

Balançando em uma cadeira de palha no fundo de sua casa, em Assaré, no sertão do Ceará, Antônio Gonçalves da Silva balbucia: "Não quero mais fazer versos. Acho que chega".
Aos 91 anos, cego e com apenas um fiapo de audição, diz que perdeu o siso, o juízo, o bom senso.
Bastam dois minutos de conversa, no entanto, para perceber que esse senhor de óculos escuros espelhados e chapéu de feltro preto está enganado.
Quando começa a declamar, Silva se transforma em Patativa do Assaré, nome com o qual semeou a reputação de um dos maiores poetas populares deste século no Brasil.
Patativa não deixou de fazer versos, não perdeu o juízo e não consegue convencer ninguém de que "chega".
Dono de memória suficiente para recitar seus versos "até dobrar a noite", Patativa também está sendo lembrado. Aliás, nunca esteve tão presente nas livrarias.
Depois de ter todos os seus principais cordéis reunidos em um volume no início deste ano, o poeta é tema de três livros que estão sendo lançados este mês.
O mais ambicioso deles, a biografia "O Poeta do Povo" (CPC/ Umes), de Assis Ângelo, tem lançamento marcado para hoje, às 18h30, em São Paulo (leia mais à pág. E 4).
As honrarias, o poeta as recebe com uma aparente frieza. "Agradeço a eles de coração, mas não me sinto maior. Eu não tenho vaidade, não tenho nada. Sou o que sempre fui, um caboclo da Serra de Santana. Nunca mudei nada", diz, repetindo o nada.
Com os pés se esforçando a alcançar o chão de cimento tingido de vermelho, tarefa dificultada pela sua altura, pouco mais de um metro e meio, Patativa fica na ponta da cadeira, faz breve silêncio e recita: "Sou caboclo do Nordeste/ Criado dentro da mata./ Caboclo, cabra da peste,/ Poeta, cabeça chata./ Por ser poeta roceiro,/ Eu sempre fui companheiro/ Da dor, da mágoa e do pranto./ Por isso, por minha vez,/ Eu vou falar para vocês/ O que é que eu sou e o que eu canto".
E lá vai ele em estrofes falar de suas lavouras, seu aprendizado com os passarinhos, sobre os versos que faz pra cantar "nossa vida, nossa terra, nossa gente", espécie de bordão que usa para descrever o tema de sua lírica.
Terra talvez seja a palavra-chave. Agricultor a vida inteira, de roçar feijão, milho, algodão, Patativa construiu toda a sua obra enquanto lavrava. É assim desde 1922, quando Sinhozinho, como era chamado, começou a criar e estocar na memória seus primeiros versos, enquanto capinava.
Terra é não apenas o habitat de sua poesia. "Ele foi o primeiro poeta a tratar da reforma agrária", diz Assis Ângelo, que no sábado apresentou programa sobre o poeta na rádio Capital (SP).
A demarcação dos temas sociais na poesia de Patativa, porém, não pára na má distribuição de terras. Autor das expressões "Brasil de cima" e "Brasil de baixo", ele solta o verbo no retrato da miséria de alimentos, roupas, teto, miséria de letras. "Essa gleba hospitaleira onde a fada feiticeira depositou seu condão é também um grande abismo do triste analfabetismo, por falta de proteção."
Analfabeto, o poeta não é. Diz ele, dizem suas biografias, que Patativa estudou por apenas quatro meses. Saiu com noções alfabéticas e aprendeu sozinho a ler e a escrever. "O sertão tem uma escola natural. Uma escola diferente da cidade grande. Eu aprendi mesmo foi com os passarinhos", diz o poeta, colocando mais um cigarro na boca. "Estudei na linda foia do meu livro naturá", complementa, assumindo sua persona "matuta". A divisão é dele mesmo: "Faço versos na linguagem de matuto ou na linguagem erudita".
Como "caipira", faz poesia narrativa, cravada de oralidades ("biête", "dotô", "muié"), mas o poeta de Assaré também é capaz de criar decassílabos à Camões ("Você sabe que ele foi meu colega de visão? Perdi meu olho direito na infância. Ele perdeu o dele na Guerra de Ceuta", brinca).
Qual o sr. prefere, a matuta ou a erudita? "A beleza da poesia, meu filho, não está na linguagem, mas na arte do autor dizer com precisão, desenvoltura e tudo o que a poesia precisa", explica, enquanto o rádio no fundo da casa estreita, de fachada amarela, toca "Ave Maria", de Gounod.
Patativa também divide os poetas em duas categorias. Os criadores e os versejadores. "Versejador tem muito por aí. Criador, como eu, que faço poesia como se fosse um quadro, não tem mais não."
Com o mesmo tom de voz diminuto, de quem anuncia o fim de uma espécie, ele emenda a falar das patativas, pássaro azulado que acabou inspirando seu apelido. "Mataram tudo as patativas", diz o poeta, que se anuncia como o "maluco dos passarinhos".
Em busca do canto raro dessa ave, do cheiro do mato, da companhia da família é que Patativa faz as poucas escapadas de sua casa. A Serra de Santana, a três léguas (19 km) de Assaré, é o destino desses passeios semanais.
Foi lá que ele nasceu e plantou cereais e poesia. De lá saiu só em 1981, a pedido de Belinha, a mulher com quem foi casado de 1936 a 1994, ano da morte dela.
No ano em que mudou para Assaré, os versos de Patativa chegaram ao seu disco mais bem-sucedido. Nesse ano foi lançado "A Terra É Naturá", seu segundo LP, produzido por Fagner.
Ele diz que nunca procurou ter sua poesia impressa ou gravada. "Sou o homem mais feliz do mundo porque não fiz comércio da minha lira. Não sou nem fui egoísta. O que quis e quero até o fim da vida é divulgar a verdade que eu sinto e fazer amizades sem sentido de exploração", explica, acendendo mais um cigarro.
"É por isso que digo que sou um milionário. O povo todo gosta de mim. Eu gosto de todos."
E o sr. nunca pensou em ser político, Patativa? "Amigo Cassiano, more comigo este ano, que posso até lhe apoiar. Sei que é homem de conceito, mas se você virar prefeito eu deixo de lhe acreditar."
Aí está. Amostra singela de que o trovador do Assaré não deixou de fazer versos.


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