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Lançado amanhã, "O Caso Morel", primeiro romance do autor mineiro, reproduz a "realidade que mora ao lado"
Fonseca tumultua lugares de fato e ficção
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
No dicionário das idéias feitas, a
literatura policial dispara uma
pergunta automática -"Quem
foi?"-, às vezes divertida e quase
sempre diversionista charada em
busca de um bode expiatório,
motor suave do entretenimento.
Há exatos 30 anos, quando Rubem Fonseca, então o contista de
"Os Prisioneiros" (1963), "A Coleira do Cão" (1965) e "Lúcia
McCartney" (1969), publicou seu
primeiro romance, "O Caso Morel", a expectativa dos leitores já
estava uma clave acima.
A pergunta passara a um intrigado "Do que se trata?", reformulada pela estranheza de sua prosa
curta e cortante, rasgando o celofane da fórmula fácil. Nos seus
contos, Fonseca, fincara as estacas
da narrativa em universo próprio,
onde a abjeção e a violência dão a
liga entre a má consciência entediada das elites e a vida degradada
nos andares de baixo da pirâmide.
Hoje, em meio à nova maré
montante da literatura que brota
da marginalidade e às discussões
sobre a persistência crítica do realismo brasileiro, consolidado o
prestígio do escritor, roteirista de
cinema e contista, "O Caso Morel" não perdeu o interesse.
O romance de estréia do autor
de "A Grande Arte" funciona como uma porta pivotante, conduzindo-nos ora ao que nele há de
construção literária, ironia e distanciamento, ora a um espelho
fiel, reprodução brutalista da realidade que mora ao lado. São
mundos que se contaminam e co-determinam, mas não se confundem. E se, às vezes, nos parecem o
mesmo, é resultado de um emaranhamento voluntário, da mão de
um narrador disposto a tumultuar os lugares de fato e ficção.
O narrador, aqui, é um, ou melhor, são dois narradores-personagens. Paul Morel, pseudônimo
de Paulo Morais, é um artista
bem-sucedido no circuito Bienal-galerias que, preso, se descobre
escritor por compulsão. O público-alvo do seu relato, confessional, é escolhido a dedo. Vilela, escritor em crise, ex-advogado e ex-comissário de polícia, recolhe em
visitas regulares suas páginas manuscritas, sob os olhos curiosos
do delegado Matos. Direito, polícia e arte, três maneiras equivalentes de sujar as mãos, na definição que Fonseca empresta às personagens, mas que ecoa sua experiência pessoal, advogado e policial de rua no Rio dos anos 50.
Em "A Coleira do Cão", conto
que deu nome ao livro, o mesmo
Vilela já aparecia como um comissário atípico, com laivos de literato, contemplando à meia distância, observação participante, o
submundo corrupto das delegacias, a truculência do xadrez e das
batidas, enfim, o espetáculo triste
e sujo da miséria e subprodutos.
Uma combinação de horror circunspecto, retidão moral e sentido estético aguçado fazem dele
um alter ego do autor, embaralhando mais uma vez verdade literal e recriação artística.
Menos do que a elucidação do
"caso Morel", a responsabilidade
pelo assassinato que levou o pintor à prisão, o que dá vida ao romance é a alternância de vozes
conduzindo à progressiva identificação de Vilela com o aprendiz
de escritor. Os episódios confinam-se ao andar de cima, vaza
pouco a voz do morro no dia-a-dia de Morel. Desencantado com
a arte (é premiado com uma instalação de tubos de esgotos), busca uma salvação nos excessos: escatologia, obscenidade, sadismo e
masoquismo permeiam os casos
de Morel (uma jovem bem nascida com inclinação artística, uma
prostituta, uma pintora primitiva
e madames de plantão). Todos os
corpos, a começar do seu, são corpos de delito, culpa e expiação.
Tentativas de ordenar essa experiência em forma narrativa fascinam e desapontam Morel e Vilela, dividindo espaço com escrita
diversa (laudos de necropsia, boletins de ocorrência, diários), perturbadora do esforço construtivo
maior. O colapso final dos narradores duplos renova a questão sobre o sentido dessa saturação da
violência em Rubem Fonseca.
Denúncia, alegoria, duplicação
do real, cinismo, entretenimento:
afinal, de que se trata? Se o resultado diverte, produz desconforto, o
que lhe cabe como um mérito.
Fábio de Souza Andrade, 37, é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett - O Silêncio Possível"
(Ateliê) e "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp)
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