São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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LITERATURA/MEMÓRIA

Morte e obsessão artística marcam prosa de Haroldo Maranhão

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

É tentador traçar um paralelo entre o paraense Haroldo Maranhão, morto em Petrópolis na última quinta-feira, aos 76 anos, e o carioca Machado de Assis. "Memorial de Aires", deste último, foi publicado no ano da morte de seu autor, em 1908.
"Memorial do Fim", do primeiro, que parodia o estilo do segundo, foi relançado três meses atrás, quando a saúde do paraense já se achava bastante debilitada.
Mas há uma diferença de grau entre o significado da morte de um e de outro escritor. Quando Machado morreu, considerado modelo literário, era presidente da Academia Brasileira de Letras, alto funcionário público, amigo de pessoas influentes da vida nacional.
Maranhão andava injustamente esquecido. Sua morte não abalou a nação. Mas há esperança. A editora Planeta iniciou, com "Memorial do Fim", a republicação de sua obra. O próximo volume é uma coletânea de contos, a ser lançada até o final do ano.
Os contos estão sendo selecionados pelo crítico e filósofo Benedito Nunes, grande admirador (além de conterrâneo) de Maranhão.

Plasma de estilos
Um dos traços formais de sua escrita é a obsessão artística com que plasma estilos diversos. Um exemplo é "O Tetraneto Del-Rei" (1982), romance picaresco que retrata a trajetória de Dom Jerônimo de Albuquerque, fundador da cidade de Natal. Nesta obra, o ficcionista reconstrói, ou, como se diz hoje em dia, desconstrói, a prosa seiscentista.
Para inventar o "Memorial do Fim", Maranhão relia diariamente a obra de Machado e reescrevia dezenas de vezes cada frase de seu romance, até encontrar o tom adequado. As várias versões foram redigidas à mão, a despeito de proibição médica. O esforço, aliado a duas tromboses, custou-lhe um dedo da mão direita - como ele gostava de contar.
A morte, ou o medo da morte, domina seus textos, como a coletânea de histórias "As Peles Frias" (1982), em que se destaca a premiada novela "A Morte de Haroldo Maranhão". "Cabelos no Coração" (1990), um catatau de quase 500 páginas (saudado pelo filólogo Antônio Houaiss como "um romance para grandes leitores") foi escrito em quatro meses, pois o autor tinha receio de morrer antes de concluí-lo.
Maranhão começou tarde na literatura, aos 41 anos, com "A Estranha Xícara", livro lançado em 1968. Sua trajetória, porém, está desde muito antes intimamente ligada ao jornal "A Folha do Norte", fundado por seu avô.
O escritor criou e dirigiu o suplemento literário do periódico, no qual colaboraram, na década de 1940, muitos dos nomes mais importantes das letras, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
As experiências com a linguagem e com os limites entre os gêneros literários podem ter dificultado o acesso dos leitores aos livros de Maranhão. Ele nunca foi popular, embora tenha sido inúmeras vezes premiado, elogiado pela crítica e publicado em outros países.
Há três anos a Companhia Vale do Rio Doce adquiriu parte de seu acervo, que hoje figura em sala especial da Biblioteca Pública Arthur Vianna, no Pará. Sua obra antiga está sendo reeditada. Inéditos virão a lume, dentre os quais uma peça de teatro sobre o período da ditadura.
Talvez, com a morte, Maranhão afinal alcance, ao contrário de Machado, um pouco do reconhecimento sem pausa que a vida lhe negou.


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