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TEATRO
Nos palcos, foi protagonista de grandes diretores
Integrante da companhia de Cacilda Becker, mostrava auto-exigência que estendia aos seus colegas de elenco
Ator esteve envolvido em algumas das principais peças do teatro brasileiro, como "Rei Lear", "Vereda
da Salvação" e "Yerma"
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Raul Cortez sempre foi um
provocador, ou seja, alguém
que seduz o outro ao desafiá-lo.
Contrariando o desejo do pai
-que o queria advogado- pelo
amor ao teatro aprendido desde a infância nos quintais do
bairro de Santo Amaro, subiu
ao palco pela porta da frente:
contracenando com Cleyde Yáconis e Walmor Chagas no Teatro Brasileiro de Comédia. A
peça era "Eurídice" e, quando
faria a sua primeira intervenção -a leitura de uma carta de
Eurídice a Orfeu-, perdeu a
voz, talvez por exigir o máximo
de si mesmo desde o início.
Mantendo essa obstinada auto-exigência -que estendia
com rigor a seus colegas de palco-, sua voz soou desde então
em momentos-chave do teatro
brasileiro. Integrou a companhia de Cacilda Becker, na qual
conheceu Célia Helena, formando assim uma parceria fecunda e plena na vida e nos palcos: ambos com o mesmo talento e a mesma ética, ambos empenhados em compartilhar isso
por meio da formação de jovens
atores, responsabilidade hoje
endossada com igual firmeza
pela filha Lígia Cortez.
Seu nome está igualmente
associado ao de Antunes Filho,
em "Yerma", de García Lorca,
de 1963, e "Vereda da Salvação", de Jorge Andrade, de
1964. Entre essas duas montagens, fez o Teteriev de "Pequenos Burgueses", de Gorki, na
montagem antológica do teatro
Oficina, o que lhe rendeu os
mais importantes prêmios da
época: o Saci e o Governador do
Estado. Voltaria a trabalhar
com Antunes anos depois, em
"A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1986) e "Drácula".
Seu arrojo o fez participar de
montagens polêmicas: "Os
Monstros"", de 1968, um dos
primeiros happenings do Brasil, e sobretudo no "Balcão", de
Jean Genet, dirigido por Victor
Garcia no teatro Ruth Escobar,
onde ficava nu. Esse despudor
também era ostentado em
montagens que expunham sem
disfarces a temática homossexual: surgia transvestido em
"Rapazes da Banda", de 1970,
assim como em "Greta Garbo,
quem Diria, Acabou no Irajá".
Chamado para fazer o protagonista de "Rasga Coração", a
peça-testamento de Oduvaldo
Vianna Filho, pensou primeiro
em recusar, por não ter se engajado politicamente em sua
vida pessoal tão intensamente
quanto o personagem exigia.
Mudou de idéia ao saber que
sua segunda filha, Maria, estava
sendo amamentada no mesmo
quarto no qual Vianninha havia
morrido: "Que engraçada maneira que Vianna arranjou de
me dar a resposta".
Seu Manguari Pistolão se
tornou outro personagem inesquecível de uma extensa galeria que inclui o "Lobo de Ray-ban" de Renato Borghi (1987).
Fez espetáculos-solo marcantes, nos quais cantava e
dançava: "Ah..mérica" (85) e
"Um Certo Olhar" (99), que entremeava com sua bem-sucedida carreira na TV. Mas sua consagração talvez tenha vindo
com o "Rei Lear" (2000), montagem de Ron Daniels, na qual
contracenava com a filha Lígia.
Foi nessa ocasião que tive
notícia da peculiar pedagogia
de Cortez. Um aluno meu, que
participava da montagem fazendo uma ponta na qual teria
que entregar uma mensagem
nas mãos do Rei, disse-me que
recebeu o seguinte desafio na
coxia, assim que começou a
temporada: "Você está encrencado. Cada dia eu vou fazer isso
de uma maneira diferente".
A morte de Raul Cortez, como foi a de Vianninha, serve
para nos instigar a seguir em
frente. O teatro, como o cinema
e a TV, está em luto, deixando
de lado preconceitos e mesquinharias. Que o muito que ele
fez inspire o muito que se há de
fazer ainda.
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