São Paulo, Segunda-feira, 19 de Julho de 1999
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Bahia abençoa os 250 anos de Goethe


Marcio Meirelles e sua Cia. Teatro dos Novos encenam "Fausto Zero" unindo elementos populares à obra alemã


ERIKA SALLUM
enviada especial a Salvador

É negra, nordestina e muito brasileira a mão que o Brasil estende a Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) nas comemorações dos 250 anos de nascimento do gênio da literatura alemã.
E vem de Salvador, Bahia, esse original presente de aniversário ao poeta: harmonizando o clássico e nossas raízes populares, a Companhia Teatro dos Novos prepara a montagem de "Urfaust", que entra em cartaz no teatro Vila Velha no dia 10 de agosto.
Antes da estréia, o espetáculo será tema de um documentário alemão sobre o mito fáustico, ao lado de mais três encenações -da Rússia, EUA e Romênia.
Até agora inédito em português, "Urfaust" é a primeira versão de "Fausto", conhecida também como "Proto-"Fausto'" ou "Fausto Primitivo". Traduzido especialmente para o espetáculo por Christine Röhrig, o texto ganhou o título de "Fausto Zero", para deixar clara a idéia de ser "Urfaust" o ponto inicial da obra-prima de Goethe que narra o pacto de um homem com o diabo.
Mais seco, sintético e bem menos filosófico que "Fausto", "Urfaust" foi escrito por um jovem Goethe por volta de seus 20 anos e traz uma força e poesia que não passaram despercebidos pelo diretor soteropolitano Marcio Meirelles, um nome que se mistura à própria história do teatro baiano.
Também cenógrafo e figurinista, Meirelles foi fundador do grupo Avelãz e Avestruz (1976-1989), do Bando de Teatro Olodum, em 1990, e, desde 1994, ajuda a revitalizar um dos mais importantes espaços teatrais de Salvador, o teatro Vila Velha.
Inaugurado em 1964, o local abrigou durante anos o grupo Sociedade Teatro dos Novos, formado em 1959 por atores como Othon Bastos e Carlos Petrovich. A companhia se dispersou, e o Vila Velha, sem verba, entrou em decadência -até que Meirelles decidiu dar nova vida ao teatro.
Após uma imensa reforma, o Vila Velha é hoje sede do grupo Viladança, do Bando de Teatro Olodum e da Companhia Teatro dos Novos. Os dois últimos realizaram juntos, no início do ano, o espetáculo "Sonho de uma Noite de Verão", que unia à peça de Shakespeare elementos da cultura afro-baiana, como capoeira etc.
E é essa miscigenação o caminho buscado por Meirelles e suas trupes do Vila Velha. Em "Fausto Zero", não será diferente: repleto de referências ao Nordeste, a montagem traz no elenco atores negros no papel de Margarida (Rita Santana) e Mefistófeles (Gustavo Melo). Fausto é interpretado pelo experiente ator (branco) Fernando Fulco.
"Mefisto é o ser que cria, um Exu a intermediar o lado sombrio e a luz. Ao contrário do que pensam, ele é o único personagem honesto, ele nunca traiu Fausto, apenas fez o que lhe foi pedido, e é muito bacana que um ator negro o interprete", diz Meirelles.
Para a atriz Rita Santana, a oportunidade de viver no palco a protagonista Margarida, amada de Fausto, é significativa: "O mercado para um ator negro é extremamente restrito. Ainda, às vésperas do ano 2000. Mas a realidade é essa, e fazer Margarida me dá a possibilidade de interpretar uma mocinha antimocinha que ela, na verdade, é".
O espírito que aparece para Fausto no início da peça estará vestido com trajes típicos do maracatu, e as músicas, compostas por Jarbas Bittencourt, também reforçarão a mescla erudito-popular e serão executadas ao vivo pela Banda do Sonho.
Segundo Meirelles, "Fausto Zero" terá três versões. Uma será para a sala principal do Vila Velha, em que a platéia apenas ocupará as galerias superiores, vendo toda a ação de cima, distante do elenco.
Outra será destinada a uma sala menor do teatro, o Cabaré dos Novos, que, como o próprio nome indica, se destina a apresentações mais intimistas, shows, como um cabaré. Ali, os atores estarão perto do público.
Há ainda uma terceira versão, para bairros da periferia de Salvador e, eventualmente, excursões pelo interior do Estado. "Levar "Fausto Zero" para dentro da Bahia era nossa idéia inicial, mas o projeto ficou caro e não teve como ser sustentado. Assim, faremos uma versão para a periferia, com algumas alterações de acordo com o lugar", conta o diretor.
Foi essa encenação para uma platéia mais carente e popular que chamou a atenção de uma TV alemã, encarregada de documentar a saga de Fausto, por meio de quatro montagens estrangeiras, como parte das comemorações dos 250 anos de Goethe. "Eles nem querem filmar a estréia, mas, sim, o processo de ensaio e construção desse "Fausto" tão brasileiro", afirma Meirelles.
Seja em que versão for, o certo é que o texto de Goethe será preservado, sem cortes ou adaptações. E o diretor não tem medo da incompreensão da platéia diante de uma obra alemã do século 18?
"Nunca se deve menosprezar o espectador. Se eu leio e me emociono com esses versos atemporais, por que os outros não irão? O público brasileiro se desacostumou com texto. Mas isso não é defeito, é falta de prática. E Goethe é universal..."


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