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RESENHA DA SEMANA
A consciência inflamada
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
É característico de uma
certa tradição da crítica literária de inspiração marxista privilegiar nos romances o retrato
do país e da sociedade em que
foram escritos. Nada mais compreensível portanto, pela lógica
dessa mesma crítica, que um jovem escritor russo, após a queda
do comunismo, se esforce para
escapar da armadilha dessa lógica, nem que seja pela ironia e pelo deboche, retratando um país e
uma sociedade irretratáveis.
"Buddha's Little Finger" (O
Mindinho do Buda), título especialmente feliz da tradução americana do terceiro romance
("Tchapaiev i Pustota" -Tchapaiev e o Vazio-, no original
em russo) de Victor Pelevin, 38,
é uma alegoria delirante, e muito engraçada, sobre a ilusão de
uma identidade russa ou de
qualquer outra identidade nacional ou individual que possa
alguma vez ter sido reconhecida
nas páginas de um romance.
Pelevin já é conhecido do leitor brasileiro por uma outra alegoria debochada, também sobre
a "alma russa": "A Vida dos Insetos", recém-publicado pela
Rocco. Em "Buddha's Little Finger", ele revisita um personagem real e folclórico da história
soviética, o comandante bolchevique Tchapaiev, herói da revolução e da guerra civil -imortalizado no relato "Tchapaiev"
(1923), de Furmanov, e no filme
homônimo (1934) dos irmãos
Vassiliev-, sob o pretexto de
revelar a sua "verdadeira alma"
à luz de um revisionismo budista.
A graça já começa daí, mas vai
muito além. Transportando os
clichês budistas para a própria
concepção do romance, Pelevin
cria uma estrutura narrativa
alucinada em que o presente e o
futuro podem não ser mais do
que um pesadelo do passado, e
vice-versa.
Tudo começa em 1919, quando o jovem poeta Pyotr Void
(vazio, em inglês), depois de algumas peripécias em Moscou,
se vê sob o comando de Tchapaiev, na Divisão Asiática do
Exército Vermelho.
A Rússia da revolução e da
guerra civil é retratada por Pelevin como uma comédia dos irmãos Marx ou um faroeste surrealista. É uma casa de loucos,
um terreno movediço como os
sonhos, tão mutante quanto os
personagens que ganham novas
identidades conforme também
mudam os cenários.
O segundo capítulo parece dar
uma explicação para o delírio,
mas não por muito tempo. O
protagonista agora está no presente, internado num hospício
pós-perestroika, e a loucura precedente não passaria de sua alucinação, fruto de um distúrbio
de personalidade que o faz acreditar que é Pyotr Void e está participando da guerra civil, sob o
comando de Tchapaiev.
Tudo estaria esclarecido se
não fossem os capítulos seguintes quando, de volta a 1919, o
protagonista, sob a sábia orientação de Tchapaiev, descobre
que o hospício é, na verdade,
apenas um pesadelo recorrente
que ele vem tendo após ter sido
ferido na cabeça e que sua participação rocambolesca na guerra
civil não é alucinação, como
quer o psiquiatra do seu sonho
do futuro, mas a realidade.
As coisas vão se tornando
mais e mais complexas conforme Tchapaiev, em seu perfil revisitado de mestre budista, vai
abrindo uma nova percepção do
mundo ao protagonista: "Será a
minha consciência inflamada
que cria o pesadelo, ou será que
ela própria já é uma criação do
pesadelo?".
O mesmo processo termina
atingindo a própria ironia do romance, que se desdobra em várias camadas até tornar-se ironia da ironia, até não se saber
mais de onde ela parte, se é efeito da consciência ou do pesadelo. Todas as certezas, as pretensas essências e identidades são
reduzidas a pó diante do mindinho do Buda. Não só a velha "alma russa" e a dos "novos russos" capitalistas, mas também a
consciência do narrador.
À primeira vista, "Buddha's
Little Finger" parece repetir que
a vida é sonho, que estamos sendo sonhados etc. Só que Victor
Pelevin não é Borges. Seria, antes, uma espécie de Borges que
risse das próprias parábolas e de
si mesmo. E que, embora pregando que o mundo está na
mente de cada um, saberia que a
mente, a começar pela sua, não
está em lugar nenhum.
Buddha's Little Finger
Autor: Victor Pelevin
Tradução: Andrew Bromfield
Editora: Viking
Quanto: US$ 25,95 (335 págs.)
Onde encontrar: www.bn.com,
www.amazon.com
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