São Paulo, sábado, 19 de agosto de 2000


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RESENHA DA SEMANA
A consciência inflamada

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

É característico de uma certa tradição da crítica literária de inspiração marxista privilegiar nos romances o retrato do país e da sociedade em que foram escritos. Nada mais compreensível portanto, pela lógica dessa mesma crítica, que um jovem escritor russo, após a queda do comunismo, se esforce para escapar da armadilha dessa lógica, nem que seja pela ironia e pelo deboche, retratando um país e uma sociedade irretratáveis.
"Buddha's Little Finger" (O Mindinho do Buda), título especialmente feliz da tradução americana do terceiro romance ("Tchapaiev i Pustota" -Tchapaiev e o Vazio-, no original em russo) de Victor Pelevin, 38, é uma alegoria delirante, e muito engraçada, sobre a ilusão de uma identidade russa ou de qualquer outra identidade nacional ou individual que possa alguma vez ter sido reconhecida nas páginas de um romance.
Pelevin já é conhecido do leitor brasileiro por uma outra alegoria debochada, também sobre a "alma russa": "A Vida dos Insetos", recém-publicado pela Rocco. Em "Buddha's Little Finger", ele revisita um personagem real e folclórico da história soviética, o comandante bolchevique Tchapaiev, herói da revolução e da guerra civil -imortalizado no relato "Tchapaiev" (1923), de Furmanov, e no filme homônimo (1934) dos irmãos Vassiliev-, sob o pretexto de revelar a sua "verdadeira alma" à luz de um revisionismo budista.
A graça já começa daí, mas vai muito além. Transportando os clichês budistas para a própria concepção do romance, Pelevin cria uma estrutura narrativa alucinada em que o presente e o futuro podem não ser mais do que um pesadelo do passado, e vice-versa.
Tudo começa em 1919, quando o jovem poeta Pyotr Void (vazio, em inglês), depois de algumas peripécias em Moscou, se vê sob o comando de Tchapaiev, na Divisão Asiática do Exército Vermelho.
A Rússia da revolução e da guerra civil é retratada por Pelevin como uma comédia dos irmãos Marx ou um faroeste surrealista. É uma casa de loucos, um terreno movediço como os sonhos, tão mutante quanto os personagens que ganham novas identidades conforme também mudam os cenários.
O segundo capítulo parece dar uma explicação para o delírio, mas não por muito tempo. O protagonista agora está no presente, internado num hospício pós-perestroika, e a loucura precedente não passaria de sua alucinação, fruto de um distúrbio de personalidade que o faz acreditar que é Pyotr Void e está participando da guerra civil, sob o comando de Tchapaiev.
Tudo estaria esclarecido se não fossem os capítulos seguintes quando, de volta a 1919, o protagonista, sob a sábia orientação de Tchapaiev, descobre que o hospício é, na verdade, apenas um pesadelo recorrente que ele vem tendo após ter sido ferido na cabeça e que sua participação rocambolesca na guerra civil não é alucinação, como quer o psiquiatra do seu sonho do futuro, mas a realidade.
As coisas vão se tornando mais e mais complexas conforme Tchapaiev, em seu perfil revisitado de mestre budista, vai abrindo uma nova percepção do mundo ao protagonista: "Será a minha consciência inflamada que cria o pesadelo, ou será que ela própria já é uma criação do pesadelo?".
O mesmo processo termina atingindo a própria ironia do romance, que se desdobra em várias camadas até tornar-se ironia da ironia, até não se saber mais de onde ela parte, se é efeito da consciência ou do pesadelo. Todas as certezas, as pretensas essências e identidades são reduzidas a pó diante do mindinho do Buda. Não só a velha "alma russa" e a dos "novos russos" capitalistas, mas também a consciência do narrador.
À primeira vista, "Buddha's Little Finger" parece repetir que a vida é sonho, que estamos sendo sonhados etc. Só que Victor Pelevin não é Borges. Seria, antes, uma espécie de Borges que risse das próprias parábolas e de si mesmo. E que, embora pregando que o mundo está na mente de cada um, saberia que a mente, a começar pela sua, não está em lugar nenhum.


Buddha's Little Finger     Autor: Victor Pelevin Tradução: Andrew Bromfield Editora: Viking Quanto: US$ 25,95 (335 págs.) Onde encontrar: www.bn.com, www.amazon.com




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