São Paulo, sexta-feira, 19 de agosto de 2005

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HOLOCAUSTO AFRICANO

Em 1994, o Hôtel des Mille Collines foi ocupado por refugiados tutsis; espaço deve ser leiloado

Marcas da dor povoam palco de "Hotel Ruanda"

MARC LACEY
DO "NEW YORK TIMES", EM KIGALI

Tarde de domingo. Uma garotinha usando bóias pulou na piscina do Hotel Ruanda real, soltando um gritinho de prazer quando seu corpo mergulhou na água fria. Ela era pequena demais para saber que, dez anos atrás, pessoas desesperadas beberam água dessa mesma piscina para não morrer.
Na recepção do hotel, um recém-chegado estava sendo recebido com a notícia de que havia vagas -tudo muito diferente da situação vigente em 1994, quando os 113 quartos do hotel estavam lotados, e o heróico gerente da época, Paul Rusesabagina, parou de cobrar diárias dos hóspedes.
Naquele tempo o hotel mais parecia um campo de refugiados, com alguns quartos abrigando até dez pessoas, e o saguão e os corredores também repletos de pessoas e colchonetes.
O Hôtel des Mille Collines conseguiu resistir aos acontecimentos traumáticos de 1994 retratados com tanta força no filme "Hotel Ruanda", mas, como boa parte do país, não consegue se livrar da memória do frenesi assassino que se desencadeou fora de seu jardim arborizado, deixando 1 milhão ou mais mortos da etnia tutsi ou hutus de tendência moderada.
Aqui, longe do brilho de Hollywood e da fanfarra da entrega do Oscar, não existem objetos físicos que recordem os fatos pavorosos. Não há placa em homenagem aos atos de bravura ocorridos aqui. Nenhum memorial recorda os ruandeses que não conseguiram chegar até o estabelecimento.
O hotel, que pertencia à hoje falida companhia aérea belga Sabena, está prestes a ir a leilão. A idéia prevalecente é que os potenciais compradores estarão mais interessados em renovar o imóvel de 32 anos de idade com vistas a seu aproveitamento futuro do que em recordar o passado.
O nome do hotel, Mille Collines, se deve ao apelido do próprio país: Ruanda é conhecida como o "país das mil colinas". Depois que a paz voltou ao país, os proprietários do hotel substituíram as janelas marcadas por tiros. O lado sul do hotel de quatro andares foi reformado, de modo que não se vê o lugar onde um morteiro abriu um rombo na parede durante os tempos violentos de 94. O Mille Collines voltou a ser um hotel elegante.
Apesar dos esforços feitos para seguir adiante como hotel de luxo, o Mille Collines continua, até certo ponto, marcado pelo que aconteceu dentro de suas paredes -mesmo porque muitos de seus funcionários da época continuam em seus cargos até hoje.
O técnico Abias Musonera, que em abril e maio de 1994 passou seis semanas escondido com sua família no Mille Collines, disse que jamais esquecerá como sua mulher, Immaculée, entrou em trabalho de parto no quarto 216 e deu à luz um menino. "Ninguém morreu aqui", disse Musonera, 47. "Deus nos protegeu, Paul nos protegeu, e todos nós ajudamos uns aos outros."
Ele recordou como a rotina do hotel começou a ir por água abaixo quando a violência no país foi se agravando e o número de pessoas que buscavam refúgio no hotel não parava de aumentar. A água acabou, a luz parou de funcionar. O gerador quebrou, mergulhando o hotel na escuridão.
O barman Jean Mudadira, 34, se recorda de estar sobre o telhado do hotel no dia em que o estabelecimento foi invadido por milicianos hutus. Ele conta que pensou em saltar do telhado para evitar uma morte muito mais brutal. Para seu espanto, porém, os matadores o deixaram viver.
A idéia de saltar do telhado do hotel para evitar o massacre certeiro apareceu no filme "Hotel Ruanda", que nem Mudadira ou a maioria dos outros funcionários do hotel viu. Existem algumas cópias piratas do filme em circulação em Kigali. Quando uma delas foi exibida recentemente no hotel, cinco homens se reuniram em volta de uma tela pequena para assistir à versão de Hollywood.
Houve alguns risos enquanto eles apontavam para detalhes que, afirmaram, os criadores do filme não reproduziram corretamente, como a aparência dos uniformes militares ou a letra de uma canção cantada pelas crianças em um campo de refugiados. Perto do final do filme, quando rebeldes liderados por tutsis atacam os militantes hutus que estavam aterrorizando as pessoas retiradas do Mille Collines, eles aplaudiram. Ao final, concordaram sobre uma coisa: o filme vai ajudar os estrangeiros a compreender o que aconteceu em Ruanda, mas de maneira moderada. "É impossível mostrar o que realmente aconteceu", disse Kenyatta Nkusi-Kabera, 30. "Ninguém seria capaz de assistir ao que aconteceu. As pessoas teriam que ficar de olhos fechados."


Tradução Clara Allain

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