São Paulo, sábado, 19 de agosto de 2006

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Crítica/Ficção

Atwood foge da ficção científica comum

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Conto de Aia", livro de 1985 de Margaret Atwood relançado agora no Brasil, é muitas vezes situado em uma linhagem de grandes romances distópicos, como "1984", de George Orwell, ou "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, que, a partir da experiência presente, extrapolam sociedades futuras marcadas por restrições e limites dos mais variados tipos. Não é à toa, aliás, que a autora rejeita que a obra seja classificada de ficção científica e diz preferir o termo "ficção especulativa".
Ainda que a comparação seja pertinente, ao contrário dos dois outros textos, que ultrapassam em muito a provável intenção de seus criadores de "alertar a humanidade", este romance da escritora e ensaísta canandense acaba fazendo o oposto, a todo instante nos lembrando que a ficção aqui é quase uma desculpa para tratar de temas como o papel da mulher, os perigos de fundamentalismos religiosos e de regimes totalitários. E isso, a despeito da evidente importância de tais assuntos, diminui o livro.
Leia-se, como exemplo, este parágrafo "didático-existencialista" narrado em primeira pessoa pela protagonista, uma rara mulher fértil sem nenhum direito cuja única função na vida era tentar engravidar: "Mas isso está errado, ninguém morre por falta de sexo. É por falta de amor que morremos. Não há ninguém que eu possa amar, todas as pessoas que eu podia amar estão mortas ou em outro lugar (...) Poderiam muito bem não estar em lugar nenhum, como eu estou para elas. Também sou uma pessoa desaparecida".

Piegas
Apesar de certo tom piegas, nota-se que a autora domina o seu ofício e sabe o que está fazendo (Atwood oferece há anos em diferentes universidades de língua inglesa cursos muito concorridos de "creative writing"), mas ao mesmo tempo é difícil não constatar que existe aí algo de vazio, com a aparente complexidade encobrindo no final um efeito fácil.
Ainda assim, "O Conto de Aia" é um dos maiores sucessos de Margaret Atwood: foi finalista do Booker Prize, importante prêmio literário inglês, e foi adaptado para o cinema, com roteiro de Harold Pinter e direção de Volker Schlöndorff (para quem se interessar, o título em português do filme é "A Decadência de uma Espécie").


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e A Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (editora Globo). É também o organizador da obra "Memórias do Presente - 100 Entrevistas do Mais!" (Publifolha).

O CONTO DE AIA   
Autor: Margaret Atwood
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco
Quanto: não definido (368 págs.)


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