São Paulo, sábado, 19 de agosto de 2006

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DRAUZIO VARELLA

Um chope gelado

O trabalho parece uma draga que, quanto mais terra abocanha, mais encontra para cavar

CHEGO A sonhar com um pouco de tempo livre. Não precisava muito, bastariam algumas horas à toa, sem sentir que estou cabulando aula, prejudicando algum cristão ou cometendo um pecado capital.
Hoje em dia, o trabalho parece uma draga que, quanto mais terra abocanha, mais encontra para cavar.
Nos anos 60, assisti a um debate na USP sobre o destino que o homem do ano 2000 daria ao tempo livre. Os debatedores partiam do princípio de que na virada do século 20 as máquinas fariam o trabalho com tanta eficiência que quatro horas diárias seriam suficientes para a jornada do trabalhador. Nessas condições, como evitar que a ociosidade o levasse ao alcoolismo, à angústia das especulações existenciais e ao suicídio?
É possível imaginar previsão mais equivocada?
Anos atrás, comprei um fax e fui obrigado a acordar mais cedo para ler os rolos de mensagens que chegavam diariamente. Vieram o computador e o celular, e me transformei num ser on-line, verdadeiro ambiente ambulante que instala seu inferno particular onde quer que se encontre.
Antes que você, leitor, imagine que será obrigado a ouvir uma daquelas apologias sobre a vida na época das cavernas, deixo claro que posso ser tudo, menos saudosista, e que o desabafo anterior é simples preâmbulo da história que se segue.
Quando entrei na faculdade, ouvi falar das habilidades cirúrgicas de um colega que havia acabado de completar a residência médica. Corria a fama de que operava mais depressa e com técnica mais acurada do que muitos professores, além de se relacionar de forma solidária com o paciente mais humilde, qualidades que nem sempre caminham pela mesma estrada. Não cheguei a conhecê-lo nem tive notícias de seu paradeiro por mais de dez anos, até o dia em que falamos por telefone. Queria que eu orientasse o caso de uma senhora que ele havia operado de um tumor maligno disseminado em ambos pulmões.
Foi o início de uma parceria profissional que durou 15 anos.
Seu consultório ficava na av. Celso Garcia, via de acesso para a populosa zona leste. Cobrava preços módicos e tinha clínica numerosa: familiares de pequenos comerciantes, operários especializados, trabalhadores autônomos. Começava a operar às cinco da manhã para dar conta das consultas que o aguardavam a partir da uma da tarde, no consultório.
Quando precisávamos discutir algum caso, esperava para chamá-lo no final de minhas consultas, às 21h: não havia risco de que ele tivesse ido para casa. Numa época em que os cirurgiões com clínicas nos bairros de classe média alta se queixavam da falta de clientes particulares, eram poucos os dias em que não tinha duas ou três cirurgias marcadas.
Os pacientes se referiam a ele com admiração. Relatavam casos pessoais e de entes queridos tratados com competência e abnegação. Sempre me impressionaram a acuidade com que analisava os quadros clínicos, os detalhes da personalidade de cada doente e a presteza da memória ao descrever achados operatórios e resultados de exames laboratoriais de tão vasta clientela.
Num fim de tarde perto do Natal, ele me ligou:
- Trabalhando com esse calor?
- Achou que eu estaria onde?, respondi.
- Tomando um chope gelado.
- Se tivéssemos juízo, é o que deveríamos fazer, acrescentei. Há 15 anos, nós nos falamos pelo menos uma vez por semana sem nos conhecermos pessoalmente. Se passarmos um pelo outro na rua, seguiremos em frente; você, para mim, é uma voz de tenor.
- Absurdo, não? Por que não nos encontramos um dia desses para tomar chope e nos apresentarmos?
Combinamos fazê-lo assim que passassem as festas. Desde então, voltamos ao assunto em vários telefonemas, mas nunca dava certo -às vezes, por minha culpa; outras, por causa dos compromissos dele.
Um dia, no café da manhã, leio no jornal um anúncio fúnebre com seu nome. Mal pude acreditar. Havíamos conversado por telefone dois dias antes.
No velório, encontrei alguns colegas de faculdade e muitos de nossos pacientes. Ao lado do caixão, uma mulher de preto, pálida, de óculos escuros, abraçava duas jovens desconsoladas, provavelmente filhas do casal. Meu amigo jazia entre rosas brancas, de terno azul-marinho, com as mãos entrelaçadas sobre o peito. Ao contrário do que sugeria a voz grossa, era baixo e magro; tinha sobrancelhas espessas, barba cerrada e a fisionomia tranqüila.


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