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DRAUZIO VARELLA
Um chope gelado
O trabalho parece uma draga que, quanto mais terra abocanha, mais encontra para cavar
CHEGO A sonhar com um pouco
de tempo livre. Não precisava
muito, bastariam algumas
horas à toa, sem sentir que estou cabulando aula, prejudicando algum
cristão ou cometendo um pecado
capital.
Hoje em dia, o trabalho parece
uma draga que, quanto mais terra
abocanha, mais encontra para cavar.
Nos anos 60, assisti a um debate
na USP sobre o destino que o homem do ano 2000 daria ao tempo livre. Os debatedores partiam do
princípio de que na virada do século
20 as máquinas fariam o trabalho
com tanta eficiência que quatro horas diárias seriam suficientes para a
jornada do trabalhador. Nessas condições, como evitar que a ociosidade
o levasse ao alcoolismo, à angústia
das especulações existenciais e ao
suicídio?
É possível imaginar previsão mais
equivocada?
Anos atrás, comprei um fax e fui
obrigado a acordar mais cedo para
ler os rolos de mensagens que chegavam diariamente. Vieram o computador e o celular, e me transformei num ser on-line, verdadeiro
ambiente ambulante que instala seu
inferno particular onde quer que se
encontre.
Antes que você, leitor, imagine
que será obrigado a ouvir uma daquelas apologias sobre a vida na época das cavernas, deixo claro que posso ser tudo, menos saudosista, e que
o desabafo anterior é simples
preâmbulo da história que se segue.
Quando entrei na faculdade, ouvi
falar das habilidades cirúrgicas de
um colega que havia acabado de
completar a residência médica. Corria a fama de que operava mais depressa e com técnica mais acurada
do que muitos professores, além de
se relacionar de forma solidária com
o paciente mais humilde, qualidades
que nem sempre caminham pela
mesma estrada. Não cheguei a conhecê-lo nem tive notícias de seu
paradeiro por mais de dez anos, até o
dia em que falamos por telefone.
Queria que eu orientasse o caso de
uma senhora que ele havia operado
de um tumor maligno disseminado
em ambos pulmões.
Foi o início de uma parceria profissional que durou 15 anos.
Seu consultório ficava na av. Celso
Garcia, via de acesso para a populosa
zona leste. Cobrava preços módicos
e tinha clínica numerosa: familiares
de pequenos comerciantes, operários especializados, trabalhadores
autônomos. Começava a operar às
cinco da manhã para dar conta das
consultas que o aguardavam a partir
da uma da tarde, no consultório.
Quando precisávamos discutir algum caso, esperava para chamá-lo
no final de minhas consultas, às 21h:
não havia risco de que ele tivesse ido
para casa. Numa época em que os cirurgiões com clínicas nos bairros de
classe média alta se queixavam da
falta de clientes particulares, eram
poucos os dias em que não tinha
duas ou três cirurgias marcadas.
Os pacientes se referiam a ele com
admiração. Relatavam casos pessoais e de entes queridos tratados
com competência e abnegação.
Sempre me impressionaram a acuidade com que analisava os quadros
clínicos, os detalhes da personalidade de cada doente e a presteza da
memória ao descrever achados operatórios e resultados de exames laboratoriais de tão vasta clientela.
Num fim de tarde perto do Natal,
ele me ligou:
- Trabalhando com esse calor?
- Achou que eu estaria onde?, respondi.
- Tomando um chope gelado.
- Se tivéssemos juízo, é o que deveríamos fazer, acrescentei. Há 15
anos, nós nos falamos pelo menos
uma vez por semana sem nos conhecermos pessoalmente. Se passarmos um pelo outro na rua, seguiremos em frente; você, para mim, é
uma voz de tenor.
- Absurdo, não? Por que não nos
encontramos um dia desses para tomar chope e nos apresentarmos?
Combinamos fazê-lo assim que
passassem as festas. Desde então,
voltamos ao assunto em vários telefonemas, mas nunca dava certo -às
vezes, por minha culpa; outras, por
causa dos compromissos dele.
Um dia, no café da manhã, leio no
jornal um anúncio fúnebre com seu
nome. Mal pude acreditar. Havíamos conversado por telefone dois
dias antes.
No velório, encontrei alguns colegas de faculdade e muitos de nossos
pacientes. Ao lado do caixão, uma
mulher de preto, pálida, de óculos
escuros, abraçava duas jovens desconsoladas, provavelmente filhas do
casal. Meu amigo jazia entre rosas
brancas, de terno azul-marinho,
com as mãos entrelaçadas sobre o
peito. Ao contrário do que sugeria a
voz grossa, era baixo e magro; tinha
sobrancelhas espessas, barba cerrada e a fisionomia tranqüila.
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