São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 2008

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Imagens de conflito

Fotógrafo francês J.R. fala à Folha sobre projeto que já passou pela África e agora estampa retratos de moradores em fachadas e muros do morro da Providência, no Rio

Divulgação
Lambe-lambe no morro, escolhido pelo francês após o assassinato de três jovens; o fotógrafo também ressalta que se trata da "primeira favela do Brasil" e que não possui "nenhum centro cultural'

ADRIANA FERREIRA SILVA
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Nos últimos dias, o morro da Providência, no Rio, voltou a ser notícia. Mas agora a atenção da imprensa não se voltou para um caso de polícia, como o chocante episódio de junho: eram de lá os jovens entregues à morte por militares a traficantes de um morro vizinho.
No noticiário de agora, o tema são as fotos em preto-e-branco gigantescas que, de um dia para o outro, cobriram encostas e fachadas de casas ao longo do morro. De longe, olhos arregalados destacavam-se em expressões marcantes, encarando quem passava lá embaixo, na avenida Brasil.
O autor das imagens, o fotógrafo francês J.R. (ele não revela o nome completo), fugiu dos pedidos de entrevista. Sobre ele, só quem soube foram os moradores do morro. Assim como chegou, foi-se.
No seu último dia de trabalho na Providência, no sábado, J.R., enfim, falou à Folha: "As estrelas são os personagens que aparecem nas fotos, os que cederam suas casas. Se eu ficar aparecendo, dando depoimentos, o foco deixa de ser o trabalho."

Heroínas
O rapaz de 25 anos -que atualmente tem uma de suas fotos gigantes em exibição na parede externa da Tate Modern, em Londres (onde estão também os grafites dos brasileiros osgemeos), e cujas obras fazem parte de coleções como a do artista inglês Damien Hirst- incluiu o Brasil em "Women Are Heroes" (mulheres são heroínas), projeto que já passou por países como Sudão, Serra Leoa, Quênia e Libéria. Daqui, ele segue para Índia, Camboja, Laos e Marrocos.
A idéia por trás do trabalho é simples: retratar personagens que moram em áreas de conflito destacadas pela mídia e tentar mostrar o outro lado.
"A clássica imagem das mulheres africanas na imprensa é a de pessoas muito tristes, vivendo em extrema pobreza", descreve. "Quando vamos até lá, descobrimos que elas passam por tudo isso com extrema dignidade. A maioria dos homens morreu na guerra e elas estão à frente da comunidade, lutando por suas famílias."
Sua intenção ao fotografá-las, e imprimir os rostos em lambe-lambes de grandes dimensões, é desconstruir esse estereótipo. Esse mote é o mesmo de dois projetos anteriores.
O objetivo secundário, mas não menos importante, diz J.R., é criar em lugares onde não existe arte. "A situação na Monróvia, capital da Libéria, é caótica", lembra J.R. "A principal ponte está partida ao meio, não há policiamento. Eles estão completamente abandonados à própria sorte. Quero levar arte a locais como esse."
As reportagens sobre os três rapazes assassinados levaram J.R. a inserir o morro da Providência em sua rota, mas outras informações contribuíram para a escolha. "Descobri que essa era a primeira favela do Brasil, e, por fim, que ao contrário de outros morros, não há nenhum centro cultural aqui", descreve o francês.
Com a ajuda de Maurício Hora, 39, fotógrafo nascido e criado na favela, J.R. passou um mês subindo e descendo ladeiras na Providência, acompanhado de uma equipe que incluía ainda dois fotógrafos e um videomaker -este último, Ladj Ly, integra o time que fez o polêmico videoclipe de "Stress", da dupla francesa Justice.
Além da exposição a céu aberto, o trabalho inclui um registro fotográfico de todo o processo e um documentário. Parte do material já está nos sites www.womenareheroes.be e www.jr-art.net/.
Entre as retratadas, estão duas mulheres ligadas ao episódio que envolveu o Exército. Rosiete Marinho, 45, foi quem evitou que um quarto rapaz fosse levado pelos militares.
"Eles me tiraram de uma grande depressão", fala a cozinheira, encarregada de "cuidar" da equipe. "Me senti realizada de ganhar amigos de tão longe. Nunca vou esquecer."
A outra, cuja imagem ficou estampada nas escadarias da favela, é dona Benedita, 68, avó de David da Silva, um dos rapazes assassinados no episódio. "Sou uma heroína sim. Desde que meu neto morreu, estou lutando para resistir. Perdi um pedaço de mim."
As duas estavam entre outras mulheres que, no sábado à noite, se reuniram em uma calçada da favela para assistir à projeção das imagens e se despedir do "francês".
A sessão terminou em samba. Com churrasco e muita cerveja.

NA INTERNET
www.folha.com.br/ilustrada
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