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São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Ary e Carmen na batucada da vida

Não formaram dupla, como Chitãozinho e Xororó. Nem mesmo parceria, como Tom e Vinícius ou Roberto e Erasmo Carlos. No entanto são nomes para sempre associados, representantes máximos, em dois níveis, do nosso caldo cultural. No âmbito nacional, foram os artistas mais expressivos da década de ouro da música popular brasileira. No âmbito internacional, continuam sendo os maiores produtos de exportação no setor, apesar da competição com Tom Jobim.
Nem a morte de Carmen Miranda em 1955 impediu que seu mito e carisma permanecessem vivos. Nem a morte de Ary em 1964 interrompeu a carreira internacional de seus maiores standards -que não são necessariamente suas melhores obras. Os dois, juntos, equivalem a quase 50% do que o mundo lá fora conhece do Brasil em termos de música popular.
Carmen foi pichada por ser produto de exportação. Sofreu com isso. Talvez tenha até morrido por isso. Foi imitada por Mickey Rooney, Bob Hope, Groucho Marx. Até hoje, qualquer filme sobre o início dos anos 40 tem sempre alguma citação de Carmen: "Rádio Days" ("A Era do Rádio"), de Woody Allen, inclusive.
Contudo sua filmografia seria fraca -e é fraca realmente- se não fosse dela. Todos os filmes em que atuou ganham, pouco a pouco, um caráter que ainda não é de antologia, mas já de estudo e respeito. Por causa dela, evidentemente, e não por causa de Don Ameche ou de Alice Faye. Tem bibliografia em expansão -e não apenas no Brasil.
Ary Barroso teve nela a sua melhor intérprete e, na certa, sua melhor amiga. Os dois estouraram quase ao mesmo tempo, em Hollywood. Um produtor da Broadway levou Carmen para os Estados Unidos e o cinema foi logo atrás, buscando nela o tipo exótico e, ao mesmo tempo, um emblema da política de boa vizinhança do presidente Roosevelt. Ary já era o compositor mais famoso do Brasil quando, em 1939, numa noite de chuva, fez de estalo duas músicas antológicas: "Aquarela do Brasil" e "Três Lágrimas". Antes, já dera a arte-final para o samba ao juntar o tradicional piano de Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga, Eduardo Souto e Sinhô com o regional de flauta, cavaquinho e violão. Eram as vertentes que nunca haviam se encontrado e que levaram Mário de Andrade a desprezar o piano como instrumento burguês e incapaz de captar a alma nacional.
Na introdução de "No Tabuleiro da Baiana" (com Carmen e Luiz Barbosa), o piano de Ary abre majestosamente o diálogo com o conjunto regional (flauta, pandeiro, cavaquinho e violão), diálogo que nunca antes fora feito, pois havia o piano para um lado, a orquestra ou o conjunto regional de outro, sem jamais se misturarem. A partir daquele diálogo, o samba adquiria seu desenho definitivo. Não foi à toa que Carlos Machado fez um show dedicado a Ary com o título: "Mr. Samba".
O sucesso de "Aquarela do Brasil" tornou-se mundial através de Walt Disney -que, além do pioneiro desenho "Alô Amigos!", dedicaria a Ary outro filme ("Three Caballeros") com duas músicas que também abririam estrada internacional: "Na Baixa do Sapateiro" e "Quindins de Iaiá" (este último com surpreendente destaque num filme australiano, "Strictly Ballroom", cujo título em português foi "Vem Dançar Comigo", mas que teve gravações anteriores de Roberto Inglez e Morton Gould, em arranjo sinfônico).
Ao falar em Carmen e Ary, seria injustiça não citar a já mencionada idade de ouro da nossa música popular. A mesma Carmen que gravou tanto e tão bem seu amigo Ary foi a mesma que lançou Dorival Caymmi internacionalmente e foi, de longe, a melhor intérprete de Assis Valente -um gênio que ainda não mereceu espaço entre os estudiosos daquele período. Por sua vez, Ary teve grandes intérpretes na mesma década, como Mário Reis, Francisco Alves, Aracy de Almeida -responsável pela gravação de seu samba mais burilado em letra e música que é "Camisa Amarela", já relançado por Nara Leão e Gal Costa.
Nem Carmen nem Ary fizeram exclusividade da fama e do gênio. Ambos sabiam o que valiam, dentro e fora do Brasil, e nunca esnobaram outros cantores e compositores. Ary foi talvez o maior lutador pelos direitos do músico brasileiro, comprou brigas fenomenais, defendendo nem sempre o que era seu, mas o que era de todos. Carmen, em Hollywood, abriu caminho para todos os que tinham alguma chance, como o Bando da Lua.
Outro dia, por acaso, vi Carmen num velho musical da Metro, cantando ao lado de Wallace Beery no final de um daqueles filmes dos anos 40. Deu para comover. E volta e meia coloco no vídeo aquele filme inglês chamado "Brazil", de Terry Gilliam, que nada tem a ver com o Brasil. Somente a música de Ary, que é tocada em monumentais arranjos pela Sinfônica de Londres, servindo de pretexto a uma ficção cientifica, na qual a "Aquarela" é a trilha sonora, o apelo e o emblema de um mundo que podia ter sido e nunca foi.
Juntar Ary e Carmen foi uma questão de vida e morte. Ary morreu no dia em que Carmen Miranda faria anos. Carmen morreu horas antes de entrar num show com Jimmy Durante em que cantaria, pela milésima vez, um hit que fez sucesso lá fora: "Gosto de ver batuque de nêgo nessa estranha batucada", do próprio Ary. Neste ano, comemoramos o centenário de Ary. Pretendo voltar a ele e, sempre que possível, levando Carmen de carona.


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