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CARLOS HEITOR CONY
Ary e Carmen na batucada da vida
Não formaram dupla, como
Chitãozinho e Xororó. Nem
mesmo parceria, como Tom e Vinícius ou Roberto e Erasmo Carlos. No entanto são nomes para
sempre associados, representantes máximos, em dois níveis, do
nosso caldo cultural. No âmbito
nacional, foram os artistas mais
expressivos da década de ouro da
música popular brasileira. No
âmbito internacional, continuam
sendo os maiores produtos de exportação no setor, apesar da competição com Tom Jobim.
Nem a morte de Carmen Miranda em 1955 impediu que seu
mito e carisma permanecessem
vivos. Nem a morte de Ary em
1964 interrompeu a carreira internacional de seus maiores standards -que não são necessariamente suas melhores obras. Os
dois, juntos, equivalem a quase
50% do que o mundo lá fora conhece do Brasil em termos de música popular.
Carmen foi pichada por ser produto de exportação. Sofreu com
isso. Talvez tenha até morrido por
isso. Foi imitada por Mickey Rooney, Bob Hope, Groucho Marx.
Até hoje, qualquer filme sobre o
início dos anos 40 tem sempre alguma citação de Carmen: "Rádio
Days" ("A Era do Rádio"), de
Woody Allen, inclusive.
Contudo sua filmografia seria
fraca -e é fraca realmente- se
não fosse dela. Todos os filmes em
que atuou ganham, pouco a pouco, um caráter que ainda não é de
antologia, mas já de estudo e respeito. Por causa dela, evidentemente, e não por causa de Don
Ameche ou de Alice Faye. Tem bibliografia em expansão -e não
apenas no Brasil.
Ary Barroso teve nela a sua melhor intérprete e, na certa, sua
melhor amiga. Os dois estouraram quase ao mesmo tempo, em
Hollywood. Um produtor da
Broadway levou Carmen para os
Estados Unidos e o cinema foi logo atrás, buscando nela o tipo
exótico e, ao mesmo tempo, um
emblema da política de boa vizinhança do presidente Roosevelt.
Ary já era o compositor mais famoso do Brasil quando, em 1939,
numa noite de chuva, fez de estalo duas músicas antológicas:
"Aquarela do Brasil" e "Três Lágrimas". Antes, já dera a arte-final para o samba ao juntar o tradicional piano de Ernesto Nazaré,
Chiquinha Gonzaga, Eduardo
Souto e Sinhô com o regional de
flauta, cavaquinho e violão.
Eram as vertentes que nunca haviam se encontrado e que levaram Mário de Andrade a desprezar o piano como instrumento
burguês e incapaz de captar a alma nacional.
Na introdução de "No Tabuleiro da Baiana" (com Carmen e
Luiz Barbosa), o piano de Ary
abre majestosamente o diálogo
com o conjunto regional (flauta,
pandeiro, cavaquinho e violão),
diálogo que nunca antes fora feito, pois havia o piano para um lado, a orquestra ou o conjunto regional de outro, sem jamais se
misturarem. A partir daquele
diálogo, o samba adquiria seu desenho definitivo. Não foi à toa
que Carlos Machado fez um show
dedicado a Ary com o título: "Mr.
Samba".
O sucesso de "Aquarela do Brasil" tornou-se mundial através de
Walt Disney -que, além do pioneiro desenho "Alô Amigos!", dedicaria a Ary outro filme ("Three
Caballeros") com duas músicas
que também abririam estrada internacional: "Na Baixa do Sapateiro" e "Quindins de Iaiá" (este
último com surpreendente destaque num filme australiano,
"Strictly Ballroom", cujo título
em português foi "Vem Dançar
Comigo", mas que teve gravações
anteriores de Roberto Inglez e
Morton Gould, em arranjo sinfônico).
Ao falar em Carmen e Ary, seria
injustiça não citar a já mencionada idade de ouro da nossa música
popular. A mesma Carmen que
gravou tanto e tão bem seu amigo
Ary foi a mesma que lançou Dorival Caymmi internacionalmente
e foi, de longe, a melhor intérprete
de Assis Valente -um gênio que
ainda não mereceu espaço entre
os estudiosos daquele período.
Por sua vez, Ary teve grandes intérpretes na mesma década, como
Mário Reis, Francisco Alves,
Aracy de Almeida -responsável
pela gravação de seu samba mais
burilado em letra e música que é
"Camisa Amarela", já relançado
por Nara Leão e Gal Costa.
Nem Carmen nem Ary fizeram
exclusividade da fama e do gênio.
Ambos sabiam o que valiam,
dentro e fora do Brasil, e nunca
esnobaram outros cantores e
compositores. Ary foi talvez o
maior lutador pelos direitos do
músico brasileiro, comprou brigas fenomenais, defendendo nem
sempre o que era seu, mas o que
era de todos. Carmen, em Hollywood, abriu caminho para todos
os que tinham alguma chance,
como o Bando da Lua.
Outro dia, por acaso, vi Carmen
num velho musical da Metro,
cantando ao lado de Wallace
Beery no final de um daqueles filmes dos anos 40. Deu para comover. E volta e meia coloco no vídeo
aquele filme inglês chamado
"Brazil", de Terry Gilliam, que
nada tem a ver com o Brasil. Somente a música de Ary, que é tocada em monumentais arranjos
pela Sinfônica de Londres, servindo de pretexto a uma ficção cientifica, na qual a "Aquarela" é a
trilha sonora, o apelo e o emblema de um mundo que podia ter
sido e nunca foi.
Juntar Ary e Carmen foi uma
questão de vida e morte. Ary morreu no dia em que Carmen Miranda faria anos. Carmen morreu horas antes de entrar num
show com Jimmy Durante em que
cantaria, pela milésima vez, um
hit que fez sucesso lá fora: "Gosto
de ver batuque de nêgo nessa estranha batucada", do próprio
Ary. Neste ano, comemoramos o
centenário de Ary. Pretendo voltar a ele e, sempre que possível, levando Carmen de carona.
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