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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Escritor austríaco lança novo romance, com uma utopia sobre o tempo

Peter Handke na terra de Cervantes

CECILIA DREYMULLER
DO ""EL PAÍS"

Peter Handke, 61, acaba de publicar ""Der Bildverlust oder Durch die Sierra de Gredos" (A Perda da Imagem ou pela Sierra de Gredos), obra que é fruto de uma ""decepção fértil" e da nostalgia de uma convivência feliz. Na entrevista que segue, o antigo escritor cult de esquerda diz que se sente o último dos utópicos. Em seu romance, ele homenageia o vazio da paisagem espanhola.
Na mesa de madeira do jardim de sua casa em Paris, onde Peter Handke (nascido na Áustria, em 42) escreve, se espalha uma curiosa natureza-morta de ferramentas de escrita e objetos encontrados durante passeios na floresta.

 

Pergunta - Ler ""A Perda da Imagem" é como ler todos seus livros em um só.
Peter Handke -
A intenção não foi essa. O que eu queria era escrever sobre uma mulher, uma banqueira poderosa, que tem uma profissão que, no fundo, não é aproveitável em termos literários -menos ainda para uma epopéia, que era o que eu tinha em mente. Quem pode ser herói hoje em dia? Eu senti a tentação da contradição entre a profissão rara dessa mulher e um amplo movimento narrativo, a senti como apenas teria me sentido tentado narrar uma história de feitos heróicos da época medieval.
A partir desse momento, tudo era possível -num instante, ela passa de uma existência real e racional à existência onírica. Passa do público ao privado, numa oposição que me pareceu fértil.
Pesquisei longamente, conversei com muitas mulheres, mas depois omiti o que elas me disseram. Mesmo assim, é tudo real, embora não realista -real na medida em que essa mulher poderia existir de fato, coisa que me parece muito mais importante do que o realismo. E, por outro lado, ela chega a um lugar afastado do mundo, onde, de repente, encontra pessoas que conhecem sua vida profissional e cotidiana.
É a idéia de encontrar pessoas do trabalho, na qual eu insisto e da qual sou inimigo em minha vida diária material, e de repente tudo acontece de maneira diferente, porque o lugar, o ritmo do movimento e também o tempo são distintos (embora seja o tempo de agora, ele se converte em outro). As pessoas se comportam de maneira diferente quando estão fora de seu ambiente habitual, especialmente quando chegam a esse lugar por seu esforço próprio. Este último ponto é muito importante. É muito importante que tenham sido elas mesmas que se puseram em marcha.

Pergunta - A questão do tempo é uma constante que varia no decorrer do livro e que parece ser cada vez mais importante em sua obra.
Handke -
O tempo é algo incrivelmente instigante. O que é o tempo? Não sei. Como se pode manipular o tempo sem cometer um engodo? É uma matéria que os humanos não usam de maneira apropriada, é uma aventura. De qualquer maneira, é preciso estar alerta para quando pode chegar o outro tempo. É como uma baía na história da humanidade. Uma baía do utópico, algo que já desapareceu por completo da literatura. Às vezes eu me sinto como o último utópico dos tempos atuais -pelo que sei, mas com certeza deve haver milhares. A utopia se tornou algo muito difícil, em especial a utopia épica; talvez ainda seja viável na poesia. Isso se dá porque a utopia é facilmente confundida com a literatura new age ou fantástica, como ""O Senhor dos Anéis". O que se pode fazer quando minhas projeções utópicas, que estão na obra desde o início, agora se confundem com o new age ou com uma religiosidade indevidamente apropriada?

Pergunta - Entretanto, a utopia se anuncia desde as primeiras páginas. A banqueira encontra em Hondareda um mundo ao revés que é também um mundo melhor.
Handke -
Sim, é definitivamente um mundo melhor. O romance inteiro é resultado de minha decepção fértil e da nostalgia de uma convivência generosa, terna. Foi uma grande alegria para mim projetar essa gente ali, naquele desfiladeiro gigante, pessoas que realmente procuram ser vizinhos da maneira melhor que se imagina, vizinhos carinhosos. Muitas vezes, quando passeio pelos bosques aqui, penso nas pessoas de Hondareda, como se existissem de verdade, como se formassem uma grande comunidade.
E, embora essa comunidade ainda não exista, já é algo que pelo menos está no livro. Se o sonho confere o ritmo à racionalidade, isso é a escrita. Desde já, entretanto, só se pode fracassar com uma coisa assim. Fracassei com todos meus livros. ""Versuch über die Jukebox" (Ensaio sobre a Jukebox), ""Versuch über die Müdigkeit (Ensaio sobre o Cansaço) ou ""Lucie im Wald mit den Dingsda (Lucie no Bosque com as Coisas de Lá) -com toda sua marginalidade, de alguma maneira são pequenas obras-primas. Mas fracassei com o resto.
Com minha novela de formação, ""Der Kurze Brief zum Langen Abschied" (Uma Breve Carta para um Longo Adeus), tudo é quebradiço, nada acerta o tom, se bem que, por outro lado, acerte alguma coisa. Ou, então, "A Repetição", que escrevi em memória dos irmãos de minha mãe: fracassei também nisso. Tudo ficou em fragmentos.

Pergunta - Segundo Faulkner, o romancista deve ser julgado pelo esplendor de seus fracassos.
Handke -
Sim, mas ele precisa convencer por sua sinceridade, por sua nostalgia e precisa ser meticuloso. Tenho a sensação de que ""A Perda da Imagem" é uma história tão descabelada que não pode caber nos tempos atuais. A utopia e o conto de fadas não são o que as pessoas querem. Kierkegaard já dizia que as pessoas estão desesperadas por não poder fugir da banalidade do dia-a-dia, mas esse dia-a-dia as ajuda a dissimular seu desespero. Se eu tivesse que transpor o mundo material para uma novela do século 19, ou mitificá-lo, como faz García Márquez, seria incapaz, não teria linguagem nenhuma para isso. Parto só de minhas pesquisas. Assim, a realidade histórica se vê desde longe, mas vibra na narrativa.

Pergunta - O personagem do escritor em sua novela escreve a história da banqueira por encomenda e está satisfeito com essa condição.
Handke -
É bom receber uma encomenda. Acho horrorosa a maneira como os escritores se comportam hoje em dia. Todos se tornaram tão oficiais, agem como dignitários, como cardeais. Isso nunca deveria acontecer com um escritor. Eles dão entrevistas constantemente; em um momento estão no Iraque, depois em Sarajevo ou no Peru. Estão em toda parte e precisam escrever artigos para os jornais. Não sinto nenhuma confiança nessas pessoas.

Pergunta - Seus livros costumam ter um padrinho literário. Por que a escolha de "Dom Quixote" para padrinho de ""A Perda da Imagem"?
Handke -
Na realidade, é um ato de agradecimento à paisagem espanhola. As paisagens em ""Dom Quixote" aparecem de maneira tão fabulosa, e, ao mesmo tempo, tão concreta, como raras vezes já se leu. Ainda hoje, quando percorro as paisagens espanholas e vejo uma dessas propriedades semidestruídas, sou obrigado a me lembrar de ""Dom Quixote". No fundo, ""Quixote" não combina com meu livro, porque ""A Perda da Imagem" não tem nada de irônico, e por isso não existem muitas alusões à obra de Cervantes em meu livro, mas, ao final, faço uma reverência a ele e tiro o chapéu que não tenho.


DER BILDVERLUST (A Perda da Imagem). Autor: Peter Handke. Editora: Suhrkamp. "La Pérdida de la Imagen", editora: Alianza Editoral. Onde encontrar: www.amazon.de e www.casadellibro.com. Quanto: cerca de R$ 100.

Tradução Clara Allain



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