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ERUDITO/CRÍTICA
Com a BBC, Bruckner agora é obrigatório
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Um concerto desses muda o
padrão de referência. Quer
dizer, uma orquestra dessas cria
para sempre um padrão, contra o
qual medir as outras. Regida por
Jukka-Pekka Saraste, a Orquestra
Sinfônica da BBC virou um conjunto eletrizante de músicos e ao
mesmo tempo o exemplo consumado da discrição, uma orquestra arrebatadora mas de personalidade ensaística, de uma inteligência cultivada que nem por isso
perde o arrojo natural.
Só o programa de seu concerto
na Sala São Paulo, sábado passado, já era um elogio à platéia. Que
outra orquestra estrangeira tem
coragem de tocar Alban Berg e
Bruckner, ainda mais precedidos
pelo contemporâneo Magnus
Lindberg? A Osesp faz programas
assim; mas é de casa e sabe com
quem pode contar. Turistas não
têm tanta confiança.
Bastava ver o programa, então,
para saber que eles não estavam a
passeio. Há três anos, a mesma
orquestra tocou na mesma sala,
regida por Andrew Davis. Já era
de impressionar o domínio de cores e linhas e massas sonoras
-como se não se esperasse, no
mínimo, algo assim de um conjunto desse porte. Agora, com o
maestro finlandês Jukka-Pekka
Saraste, a BBC vira outra criatura.
É a orquestra contemporânea por
excelência, londrina, eficiente,
elegante, expansiva sem qualquer
traço espetaculoso.
Vale o mesmo para a interpretação sobriamente espetacular do
violinista grego Leonidas Kavakos, solista do "Concerto" de Alban Berg (1885-1935). Obra-prima do modernismo, o "Concerto
em Memória de um Anjo" foi escrito em parte para homenagear a
lembrança de uma filha de Alma
Mahler (viúva do compositor)
com o segundo marido, o arquiteto Walter Gropius; mas também
para comemorar a paixão escondida de Berg por Hanna Fuchs-Robettin, irmã (casada) do dramaturgo Franz Werfel, terceiro
marido de Alma. O imbróglio tipicamente vienense dá um sentido cheio de sinceras ambigüidades à citação, no fim, do coral luterano barroco "Es ist Genug"
("Já Basta"), empregado famosamente por Bach numa cantata.
O que não teve nada de típico foi
essa versão intimista e camerística
do "Concerto", na seqüência da
breve "Es ist Genug" de Lindberg,
lindo exercício de harmonização,
por um dos principais nomes da
nova música européia. Quase severo na sua túnica preta, com o
antiquado bigode preto criando
um efeito paradoxalmente moderno na antiquada face comprida, Kavakos toca um pouco inclinado para a esquerda, com a perna direita fazendo contrapeso.
Não poderia haver imagem mais
plástica do que se ouviu, um Berg
bem longe do limite "kitsch" onde
ele mesmo gostava de se equilibrar, sem perder as referências do
outro mundo.
No Bach do bis ("Andante" da
"Sonata nš 2" para violino solo),
Kavakos tocou sem vibrato, enchendo a sala de uma música comovedoramente austera.
Depois de tanto controle e reserva, a orquestra podia fazer tudo a que tinha direito. Fez a "Nona" de Bruckner (1824-96).
Bruckner é um problema: o problema de levar adiante a ciência
sinfônica de Beethoven com os
métodos de Wagner. É isso o que
explica as seqüências interrompidas, as muitas repetições idênticas
de temas, o caráter estático e monumental de tudo, a arquitetura
catedralesca, cheia de intervalos,
silêncios, nichos, corredores.
Se alguém ainda não tinha entendido Bruckner antes de sábado, agora não pode mais não entender. Saraste e a BBC explicam
essa música melhor do que ninguém. Vale dizer: escutam e sentem Bruckner num novo plano,
que faz do improvável provinciano mestre-escola austríaco um
dos grandes compositores da
nossa improvável hora.
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