São Paulo, terça-feira, 19 de outubro de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Com a BBC, Bruckner agora é obrigatório

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um concerto desses muda o padrão de referência. Quer dizer, uma orquestra dessas cria para sempre um padrão, contra o qual medir as outras. Regida por Jukka-Pekka Saraste, a Orquestra Sinfônica da BBC virou um conjunto eletrizante de músicos e ao mesmo tempo o exemplo consumado da discrição, uma orquestra arrebatadora mas de personalidade ensaística, de uma inteligência cultivada que nem por isso perde o arrojo natural.
Só o programa de seu concerto na Sala São Paulo, sábado passado, já era um elogio à platéia. Que outra orquestra estrangeira tem coragem de tocar Alban Berg e Bruckner, ainda mais precedidos pelo contemporâneo Magnus Lindberg? A Osesp faz programas assim; mas é de casa e sabe com quem pode contar. Turistas não têm tanta confiança.
Bastava ver o programa, então, para saber que eles não estavam a passeio. Há três anos, a mesma orquestra tocou na mesma sala, regida por Andrew Davis. Já era de impressionar o domínio de cores e linhas e massas sonoras -como se não se esperasse, no mínimo, algo assim de um conjunto desse porte. Agora, com o maestro finlandês Jukka-Pekka Saraste, a BBC vira outra criatura. É a orquestra contemporânea por excelência, londrina, eficiente, elegante, expansiva sem qualquer traço espetaculoso.
Vale o mesmo para a interpretação sobriamente espetacular do violinista grego Leonidas Kavakos, solista do "Concerto" de Alban Berg (1885-1935). Obra-prima do modernismo, o "Concerto em Memória de um Anjo" foi escrito em parte para homenagear a lembrança de uma filha de Alma Mahler (viúva do compositor) com o segundo marido, o arquiteto Walter Gropius; mas também para comemorar a paixão escondida de Berg por Hanna Fuchs-Robettin, irmã (casada) do dramaturgo Franz Werfel, terceiro marido de Alma. O imbróglio tipicamente vienense dá um sentido cheio de sinceras ambigüidades à citação, no fim, do coral luterano barroco "Es ist Genug" ("Já Basta"), empregado famosamente por Bach numa cantata.
O que não teve nada de típico foi essa versão intimista e camerística do "Concerto", na seqüência da breve "Es ist Genug" de Lindberg, lindo exercício de harmonização, por um dos principais nomes da nova música européia. Quase severo na sua túnica preta, com o antiquado bigode preto criando um efeito paradoxalmente moderno na antiquada face comprida, Kavakos toca um pouco inclinado para a esquerda, com a perna direita fazendo contrapeso. Não poderia haver imagem mais plástica do que se ouviu, um Berg bem longe do limite "kitsch" onde ele mesmo gostava de se equilibrar, sem perder as referências do outro mundo.
No Bach do bis ("Andante" da "Sonata nš 2" para violino solo), Kavakos tocou sem vibrato, enchendo a sala de uma música comovedoramente austera.
Depois de tanto controle e reserva, a orquestra podia fazer tudo a que tinha direito. Fez a "Nona" de Bruckner (1824-96). Bruckner é um problema: o problema de levar adiante a ciência sinfônica de Beethoven com os métodos de Wagner. É isso o que explica as seqüências interrompidas, as muitas repetições idênticas de temas, o caráter estático e monumental de tudo, a arquitetura catedralesca, cheia de intervalos, silêncios, nichos, corredores.
Se alguém ainda não tinha entendido Bruckner antes de sábado, agora não pode mais não entender. Saraste e a BBC explicam essa música melhor do que ninguém. Vale dizer: escutam e sentem Bruckner num novo plano, que faz do improvável provinciano mestre-escola austríaco um dos grandes compositores da nossa improvável hora.


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