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CINEMA "SANTO FORTE"
Coutinho filma filhos de santos da favela
CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha
Eduardo Coutinho subiu o
morro. Convenceu as pessoas da
comunidade da favela Vila Parque da Cidade, na Gávea, Rio de
Janeiro, a conceder entrevistas
que bem poderiam lembrar seções de psicanálise, dada a franca
intensidade dos depoimentos
captados.
O resultado é "Santo Forte", documentário que estréia hoje, trazendo de volta ao cartaz um filme
de Coutinho, autor de "Cabra
Marcado para Morrer".
Mas este não é um filme apenas
de depoimentos, apesar de se valer deles para a boa "invasão" de
privacidade a que se propõe. Enquanto o diretor vai ganhando a
confiança dos entrevistados, revela que aqueles testemunhos sinceros e benevolentes exprimiram-se
a troco de dinheiro (R$ 30 por cabeça falante).
É prática comum no documentário. "Há cem anos se faz isso",
diz o diretor. Paga-se um cachê
para o depoimento, mas aqui
Coutinho teve a impudência digna de revelar a norma. No próprio
filme. "As pessoas estão viciadas
no documentário que diz que tudo aquilo é verdade e acabou."
Eis apenas um dos aspectos de
"Santo Forte", primeiro longa-metragem produzido por uma
ONG no Brasil, a Cecip (Centro
de Criação de Imagem Popular),
que já tem no currículo uma centena de documentários em vídeo.
Este também foi feito em vídeo,
mas estréia no cinema após um
processo de cinescopagem, como
os filmes do Dogma.
"Santo Forte" refaz involuntariamente o que o sociólogo Sérgio
Buarque de Holanda detectou
com precisão, na raiz da formação religiosa do "cordial povo
brasileiro": "Há uma religiosidade de superfície, menos atenta ao
sentido íntimo das cerimônias do
que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego
ao concreto e em sua rancorosa
incompreensão de toda verdadeira espiritualidade", relatou em
"Raízes do Brasil".
Exemplar dessa faceta despojada, um tanto agressiva a olhos europeus apostólicos romanos, é o
depoimento da dançarina Carla
Santana, que conta como se desvinculou da umbanda: "Os cultos
me deixavam a roupa suja, o corpo dolorido". Mudou-se para
uma igreja evangélica.
É uma busca utilitária, com motivo arraigado no cotidiano do
morro, observada com zelo pelo
cineasta: "Todo investimento que
as pessoas fazem na religião não é
apenas material, é muito mais um
investimento simbólico. Mas esse
é um tipo de sabedoria prática, diferente da relação que poderíamos julgar ideal de um ponto de
vista europeu".
"A pessoa da favela", prossegue
Coutinho, "quando se declara de
uma igreja evangélica, passa a sobreviver, a ser respeitada pela comunidade. E ela faz isso só pra escapar? Não. Na verdade, não tenho a resposta."
E não há esforço para obtê-la.
Interessa ao documentarista -
meio antropólogo, meio psicanalista nessa empreitada - a boa
dose de sinceridade dos depoimentos, que acabam por denunciar uma aversão comum às formulas de reverência preconizadas
por todo tipo de culto místico.
Coutinho, assim, permite-nos o
acesso ao âmago das relações entre o homem e seus santos, cuja
diversidade reside na individualidade, no "desrespeito" aos procedimentos das religiões institucionais, como atestou o sociólogo.
"A religião, como forma de coesão social quando tudo naufraga,
é mais clara nas evangélicas, pois
lá se encontra um tipo de auxílio
mútuo, uma comunidade que resiste à desagregação." Mas, por
outra, em suas casas cada um reza
do jeito que aprendeu, cultua seu
santo forte como intui melhor.
É por isso que, seduzidas pelo
temor -"Quem vai mentir sobre
seus santos e sua religiosidade?",
pergunta Coutinho -, as pessoas
falam com naturalidade sobre seu
desespero ou confessam suas felicidades à equipe de "Santo Forte".
Há a mulher que preparou a
ceia de Natal de uma família rica
da zona sul, mas que não foi convidada para a festa. Passa a data
do nascimento de Jesus no morro,
cercada pelos netos. Há a tal dançarina, que visita a mãe em todos
os Natais. E é tudo verdade, ainda
que Coutinho não o queira assim,
avesso que é às formulas de relato
e reverência, como bom filho de
santo brasileiro.
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