São Paulo, Sexta-feira, 19 de Novembro de 1999
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CINEMA "SANTO FORTE"

Coutinho filma filhos de santos da favela

CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha

Eduardo Coutinho subiu o morro. Convenceu as pessoas da comunidade da favela Vila Parque da Cidade, na Gávea, Rio de Janeiro, a conceder entrevistas que bem poderiam lembrar seções de psicanálise, dada a franca intensidade dos depoimentos captados.
O resultado é "Santo Forte", documentário que estréia hoje, trazendo de volta ao cartaz um filme de Coutinho, autor de "Cabra Marcado para Morrer".
Mas este não é um filme apenas de depoimentos, apesar de se valer deles para a boa "invasão" de privacidade a que se propõe. Enquanto o diretor vai ganhando a confiança dos entrevistados, revela que aqueles testemunhos sinceros e benevolentes exprimiram-se a troco de dinheiro (R$ 30 por cabeça falante).
É prática comum no documentário. "Há cem anos se faz isso", diz o diretor. Paga-se um cachê para o depoimento, mas aqui Coutinho teve a impudência digna de revelar a norma. No próprio filme. "As pessoas estão viciadas no documentário que diz que tudo aquilo é verdade e acabou."
Eis apenas um dos aspectos de "Santo Forte", primeiro longa-metragem produzido por uma ONG no Brasil, a Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular), que já tem no currículo uma centena de documentários em vídeo. Este também foi feito em vídeo, mas estréia no cinema após um processo de cinescopagem, como os filmes do Dogma.
"Santo Forte" refaz involuntariamente o que o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda detectou com precisão, na raiz da formação religiosa do "cordial povo brasileiro": "Há uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade", relatou em "Raízes do Brasil".
Exemplar dessa faceta despojada, um tanto agressiva a olhos europeus apostólicos romanos, é o depoimento da dançarina Carla Santana, que conta como se desvinculou da umbanda: "Os cultos me deixavam a roupa suja, o corpo dolorido". Mudou-se para uma igreja evangélica.
É uma busca utilitária, com motivo arraigado no cotidiano do morro, observada com zelo pelo cineasta: "Todo investimento que as pessoas fazem na religião não é apenas material, é muito mais um investimento simbólico. Mas esse é um tipo de sabedoria prática, diferente da relação que poderíamos julgar ideal de um ponto de vista europeu".
"A pessoa da favela", prossegue Coutinho, "quando se declara de uma igreja evangélica, passa a sobreviver, a ser respeitada pela comunidade. E ela faz isso só pra escapar? Não. Na verdade, não tenho a resposta."
E não há esforço para obtê-la. Interessa ao documentarista - meio antropólogo, meio psicanalista nessa empreitada - a boa dose de sinceridade dos depoimentos, que acabam por denunciar uma aversão comum às formulas de reverência preconizadas por todo tipo de culto místico.
Coutinho, assim, permite-nos o acesso ao âmago das relações entre o homem e seus santos, cuja diversidade reside na individualidade, no "desrespeito" aos procedimentos das religiões institucionais, como atestou o sociólogo.
"A religião, como forma de coesão social quando tudo naufraga, é mais clara nas evangélicas, pois lá se encontra um tipo de auxílio mútuo, uma comunidade que resiste à desagregação." Mas, por outra, em suas casas cada um reza do jeito que aprendeu, cultua seu santo forte como intui melhor.
É por isso que, seduzidas pelo temor -"Quem vai mentir sobre seus santos e sua religiosidade?", pergunta Coutinho -, as pessoas falam com naturalidade sobre seu desespero ou confessam suas felicidades à equipe de "Santo Forte".
Há a mulher que preparou a ceia de Natal de uma família rica da zona sul, mas que não foi convidada para a festa. Passa a data do nascimento de Jesus no morro, cercada pelos netos. Há a tal dançarina, que visita a mãe em todos os Natais. E é tudo verdade, ainda que Coutinho não o queira assim, avesso que é às formulas de relato e reverência, como bom filho de santo brasileiro.


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