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RODAPÉ
Gauleses apocalípticos, franceses integrados
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
No último sábado, a Ilustrada publicou uma entrevista
com Albert Uderzo sobre o "O
Dia em que o Céu Caiu", novo álbum com as aventuras dos irredutíveis gauleses Asterix, Obelix
& cia. criados por ele e por René
Goscinny no fim anos 50.
Em resposta à pergunta de Marco Aurélio Canônico sobre quais
as diferenças entre as histórias
que realizava em parceria e aquelas que passou a escrever após a
morte de Goscinny, em 1977,
Uderzo afirma: "Não cabe a mim
dizer, é uma pergunta que deve
ser feita aos leitores. A resposta
também não cabe aos críticos,
que não têm sido simpáticos a
mim desde que comecei a criar as
histórias sozinho. Meu critério é a
satisfação que os leitores obtêm".
Se for julgado pelos critérios estatísticos da cultura de massa,
Uderzo tem razão; a prova é o sucesso comercial dos álbuns e seus
subprodutos (que incluem um
parque temático e dois longas-metragens).
Acontece que boa parte dos críticos que hoje rejeitam as histórias
criadas por Uderzo, em que a outrora bucólica aldeia gaulesa é invadida por "gadgets" de séries de
espionagem e filmes de ficção
científica, foram crianças e adolescentes que encontraram em
Asterix um oásis de inteligência e
ironia, em meio à proliferação de
super-heróis que reiteram uma
aceitação acrítica da tecnologia.
Pode parecer esquisito dar esse
tom sério, sociologizante, a um
produto de entretenimento. Mas
o fato é que, para muitos leitores,
o pequeno gaulês foi uma porta
de entrada da alta cultura -como mostra "Asterix entre os Belgas", último álbum da "era Goscinny", que culmina numa paródia de Victor Hugo e numa ilustração que usa tela de Bruegel para representar um banquete após
a vitória dos bárbaros contra os
romanos.
Goscinny (que escrevia as histórias) criou com Uderzo (que as
ilustrava) um herói infantil para
ser lido por adultos. Ou seja, o
contrário dos adultos infantilizados da era do espetáculo, aos
quais Uderzo sucumbiu.
Um dos traços marcantes do
Asterix "original" era a recusa do
fantástico. O único elemento antinaturalista das histórias de Goscinnny era a poção mágica do
druida Panoramix, que dava força
sobre-humana aos gauleses. Mas
a poção era menos um elemento
transfigurador do que uma metáfora da vontade.
Tanto é assim que, em "Asterix
entre os Bretões", quando o barril
transportado pelos gauleses é destruído pelos romanos, Asterix
forja um elixir inócuo, convencendo os aliados bretões de que se
tratava da verdadeira poção e levando-os à vitória sobre os invasores.
A poção mágica, no fundo, é um
placebo que alimenta a resistência
contra os romanos -resistência
que é uma alegoria da luta de uns
poucos franceses contra os nazistas, tendo como pano de fundo a
Gália colaboracionista de "O
Combate dos Chefes", no qual o
chefe Abracurcix enfrenta o líder
de uma aldeia alinhada a César.
Se Goscinny purgou as culpas
em relação à Segunda Guerra,
Uderzo parece reparar uma outra
culpa: ao criar um druida com as
feições do agente 007 ("A Odisséia
de Asterix") e introduzir em "O
Dia em que o Céu Caiu" extraterráqueos derivados de Walt Disney e dos mangás japoneses (além
de clones inspirados em Arnold
Schwarzenegger), sintoniza a
"França profunda" com a ficção
globalizada. Parafraseando Umberto Eco, transforma os apocalípticos gauleses em franceses integrados.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
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