São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Gauleses apocalípticos, franceses integrados

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

No último sábado, a Ilustrada publicou uma entrevista com Albert Uderzo sobre o "O Dia em que o Céu Caiu", novo álbum com as aventuras dos irredutíveis gauleses Asterix, Obelix & cia. criados por ele e por René Goscinny no fim anos 50.
Em resposta à pergunta de Marco Aurélio Canônico sobre quais as diferenças entre as histórias que realizava em parceria e aquelas que passou a escrever após a morte de Goscinny, em 1977, Uderzo afirma: "Não cabe a mim dizer, é uma pergunta que deve ser feita aos leitores. A resposta também não cabe aos críticos, que não têm sido simpáticos a mim desde que comecei a criar as histórias sozinho. Meu critério é a satisfação que os leitores obtêm".
Se for julgado pelos critérios estatísticos da cultura de massa, Uderzo tem razão; a prova é o sucesso comercial dos álbuns e seus subprodutos (que incluem um parque temático e dois longas-metragens).
Acontece que boa parte dos críticos que hoje rejeitam as histórias criadas por Uderzo, em que a outrora bucólica aldeia gaulesa é invadida por "gadgets" de séries de espionagem e filmes de ficção científica, foram crianças e adolescentes que encontraram em Asterix um oásis de inteligência e ironia, em meio à proliferação de super-heróis que reiteram uma aceitação acrítica da tecnologia.
Pode parecer esquisito dar esse tom sério, sociologizante, a um produto de entretenimento. Mas o fato é que, para muitos leitores, o pequeno gaulês foi uma porta de entrada da alta cultura -como mostra "Asterix entre os Belgas", último álbum da "era Goscinny", que culmina numa paródia de Victor Hugo e numa ilustração que usa tela de Bruegel para representar um banquete após a vitória dos bárbaros contra os romanos.
Goscinny (que escrevia as histórias) criou com Uderzo (que as ilustrava) um herói infantil para ser lido por adultos. Ou seja, o contrário dos adultos infantilizados da era do espetáculo, aos quais Uderzo sucumbiu.
Um dos traços marcantes do Asterix "original" era a recusa do fantástico. O único elemento antinaturalista das histórias de Goscinnny era a poção mágica do druida Panoramix, que dava força sobre-humana aos gauleses. Mas a poção era menos um elemento transfigurador do que uma metáfora da vontade.
Tanto é assim que, em "Asterix entre os Bretões", quando o barril transportado pelos gauleses é destruído pelos romanos, Asterix forja um elixir inócuo, convencendo os aliados bretões de que se tratava da verdadeira poção e levando-os à vitória sobre os invasores.
A poção mágica, no fundo, é um placebo que alimenta a resistência contra os romanos -resistência que é uma alegoria da luta de uns poucos franceses contra os nazistas, tendo como pano de fundo a Gália colaboracionista de "O Combate dos Chefes", no qual o chefe Abracurcix enfrenta o líder de uma aldeia alinhada a César.
Se Goscinny purgou as culpas em relação à Segunda Guerra, Uderzo parece reparar uma outra culpa: ao criar um druida com as feições do agente 007 ("A Odisséia de Asterix") e introduzir em "O Dia em que o Céu Caiu" extraterráqueos derivados de Walt Disney e dos mangás japoneses (além de clones inspirados em Arnold Schwarzenegger), sintoniza a "França profunda" com a ficção globalizada. Parafraseando Umberto Eco, transforma os apocalípticos gauleses em franceses integrados.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Literatura: Seremos os novos marcianos, diz Bradbury
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.