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ROMANCE
Vazio existencial e diferentes vozes narrativas compõem "La Possibilité d'une Île", novo livro do escritor francês
Houellebecq revela esgotamento criativo
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Michel Houellebecq, 47, o
"enfant terrible" das letras
francesas, começou bem. Foi em
1994, com "Extensão do Domínio
da Luta" (Sulina), relato em primeira pessoa de jovem informático a caminho do abismo. O tom
do romance, mistura de ironia e
sarcasmo sem a verborréia típica
dos novos escritores franceses,
conquistava o público e inflamava
a crítica. O segundo romance,
"Partículas Elementares" (Sulina), trouxe a consagração: ao denunciar os excessos da geração libertária da década de 60, a vida
dos gêmeos Bruno e Michel ampliava as obsessões do romance
anterior. O mesmo cansaço emocional. O mesmo individualismo
suburbano. A mesma impossibilidade de amor ou afeto em existências crescentemente alienadas.
Depois de 1998, ou seja, depois
das "Partículas", a questão inevitável: para onde, agora?
Houellebecq respondeu em
2001, com "Plataforma" (Record).
Ou, melhor, não respondeu: ao
escrever a história de Michel, funcionário público que procura fugir do vazio existencial com sexo e
experimentação em clubes orientais, Houellebecq repetia a fórmula anterior e o romance não exibia
a força criativa e verbal das "Partículas". Dizem que "Plataforma"
foi premonitório: o romance de
Houellebecq termina com atentado terrorista num resort turístico,
anos antes dos atentados reais em
Bali. Talvez. Mas estamos a falar
de literatura, não de adivinhação.
Por isso o romance seguinte a
"Plataforma" ganhava contornos
decisivos. Estaria Houellebecq
preparado para subir um novo
degrau?
Fim da linha
"La Possibilité d'une Île" (a possibilidade de uma ilha), que perdeu o prêmio Goncourt mas ganhou o Interrallié, é uma história
a três vozes, em dois tempos distintos. A primeira voz pertence a
Daniel, conhecido no livro por
Daniel1, um personagem que é
Houllebecq "vintage": humorista
radical, com gosto sórdido por
piadas racistas, pedófilas, canibais, parricidas, bárbaras e bestiais (no sentido zoológico do termo), Daniel1 chegou ao fim da linha, incapaz de suportar as gargalhadas do seu público. Este cansaço do riso é, no fundo, metáfora
de um cansaço da humanidade: o
riso é um traço exclusivamente
nosso. Mas Daniel1 não se libertou do seu romantismo, dessa
crença platônica de que o amor
nos preenche e completa. O romantismo de Daniel1 acabará por
destruí-lo e a sua paixão por Esther, jovem atriz espanhola, com
gosto apurado por sexo sem compromisso, será sua sepultura. Ele,
Daniel1, velho e gasto; ela, Esther,
jovem e sexualmente carnívora: a
típica receita para o desastre. Sobretudo numa cultura que elevou
a juventude a alturas impensáveis.
A situação levará Daniel1 a
aproximar-se de uma estranha
seita, paródia dos raelianos. A seita recebe o nome de elohimitas e,
em pouco tempo, acabará por arrasar a concorrência das teologias
tradicionais. Os elohimitas prometem juventude eterna: a possibilidade de reprodução eterna do
DNA em clones humanos, adultos e, palavra fundamental, jovens. Daniel1 entra na dança e
despede-se da vida.
Mas não se despede do mundo.
Dois mil anos depois, Daniel24 e
Daniel25 continuam a narrativa.
O mundo ficou destruído pela estupidez bélica dos homens e pelas
alterações do clima. As cidades estão arrasadas. Todas as obras de
arte também. Sobraram alguns
humanos, que os clones neo-humanos designam como "selvagens". Os neo-humanos, como
Daniel24 ou Daniel25, vivem protegidos numa espécie de condomínio civilizacional. Não conhecem o amor e as suas tragédias.
Não conhecem o medo da morte
porque não existe morte: quando
a vida termina, passam o testemunho para o clone seguinte. Sem
drama.
O problema é saber se a eternidade basta. Os neo-humanos de
Houellebecq não conhecem a dor,
o desencanto e tudo aquilo que
define a nossa precária condição.
Mas também não conhecem propriamente a felicidade. Apenas
uma existência desabitada. Isto,
naturalmente, cansa. E Daniel25
sente esse cansaço, resolvendo
sair da sua gaiola dourada para
conhecer o mundo humano que
restou. Fatalmente, é tarde: os
neo-humanos vivem no vazio e o
vazio é o único sentimento que
conhecem. O filósofo Schopenhauer estava errado: não se atinge a satisfação pelo simples apagamento do desejo vital. Atinge-se, simplesmente, a vacuidade.
O livro é audaz e o gosto de
Houellebecq pelas descrições humanas, a começar pelas sexuais,
revela o sentido paródico que
trouxe sucesso e polêmica. Mas
existe em "La Possibilité d'une
Île" a desagradável sensação de
que ele foi clonado de romances
anteriores. Daniel1 é apenas uma
adaptação do engenheiro informático de "Extensão", ou mesmo
de Michel, o funcionário público
de "Plataforma": a mesma depressão gentil, esse "detáchement" que começa por ser promessa de refúgio e termina em
dor insuportável. E, claro, o cansaço civilizacional e a promessa
de um futuro biologicamente perfeito é uma repetição de "Partículas Elementares".
O que não deixa de ser irônico: o
mundo de Houellebecq é feito de
esgotamento moral e intelectual.
Mas esse esgotamento passou
agora do papel para o autor, contaminando o último refúgio da
criatividade.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
La Possibilité d'une Île
Autor: Michel Houellebecq
Editora: Fayard
Quanto: € 22 (R$ 56); 486 págs.
Onde encontrar: Livros em francês podem ser encomendados na livraria
Francesa (0/xx/11/ 3231-4555) ou pelo
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