São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005

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ROMANCE

Vazio existencial e diferentes vozes narrativas compõem "La Possibilité d'une Île", novo livro do escritor francês

Houellebecq revela esgotamento criativo

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Michel Houellebecq, 47, o "enfant terrible" das letras francesas, começou bem. Foi em 1994, com "Extensão do Domínio da Luta" (Sulina), relato em primeira pessoa de jovem informático a caminho do abismo. O tom do romance, mistura de ironia e sarcasmo sem a verborréia típica dos novos escritores franceses, conquistava o público e inflamava a crítica. O segundo romance, "Partículas Elementares" (Sulina), trouxe a consagração: ao denunciar os excessos da geração libertária da década de 60, a vida dos gêmeos Bruno e Michel ampliava as obsessões do romance anterior. O mesmo cansaço emocional. O mesmo individualismo suburbano. A mesma impossibilidade de amor ou afeto em existências crescentemente alienadas. Depois de 1998, ou seja, depois das "Partículas", a questão inevitável: para onde, agora?
Houellebecq respondeu em 2001, com "Plataforma" (Record). Ou, melhor, não respondeu: ao escrever a história de Michel, funcionário público que procura fugir do vazio existencial com sexo e experimentação em clubes orientais, Houellebecq repetia a fórmula anterior e o romance não exibia a força criativa e verbal das "Partículas". Dizem que "Plataforma" foi premonitório: o romance de Houellebecq termina com atentado terrorista num resort turístico, anos antes dos atentados reais em Bali. Talvez. Mas estamos a falar de literatura, não de adivinhação. Por isso o romance seguinte a "Plataforma" ganhava contornos decisivos. Estaria Houellebecq preparado para subir um novo degrau?

Fim da linha
"La Possibilité d'une Île" (a possibilidade de uma ilha), que perdeu o prêmio Goncourt mas ganhou o Interrallié, é uma história a três vozes, em dois tempos distintos. A primeira voz pertence a Daniel, conhecido no livro por Daniel1, um personagem que é Houllebecq "vintage": humorista radical, com gosto sórdido por piadas racistas, pedófilas, canibais, parricidas, bárbaras e bestiais (no sentido zoológico do termo), Daniel1 chegou ao fim da linha, incapaz de suportar as gargalhadas do seu público. Este cansaço do riso é, no fundo, metáfora de um cansaço da humanidade: o riso é um traço exclusivamente nosso. Mas Daniel1 não se libertou do seu romantismo, dessa crença platônica de que o amor nos preenche e completa. O romantismo de Daniel1 acabará por destruí-lo e a sua paixão por Esther, jovem atriz espanhola, com gosto apurado por sexo sem compromisso, será sua sepultura. Ele, Daniel1, velho e gasto; ela, Esther, jovem e sexualmente carnívora: a típica receita para o desastre. Sobretudo numa cultura que elevou a juventude a alturas impensáveis.
A situação levará Daniel1 a aproximar-se de uma estranha seita, paródia dos raelianos. A seita recebe o nome de elohimitas e, em pouco tempo, acabará por arrasar a concorrência das teologias tradicionais. Os elohimitas prometem juventude eterna: a possibilidade de reprodução eterna do DNA em clones humanos, adultos e, palavra fundamental, jovens. Daniel1 entra na dança e despede-se da vida.
Mas não se despede do mundo. Dois mil anos depois, Daniel24 e Daniel25 continuam a narrativa. O mundo ficou destruído pela estupidez bélica dos homens e pelas alterações do clima. As cidades estão arrasadas. Todas as obras de arte também. Sobraram alguns humanos, que os clones neo-humanos designam como "selvagens". Os neo-humanos, como Daniel24 ou Daniel25, vivem protegidos numa espécie de condomínio civilizacional. Não conhecem o amor e as suas tragédias. Não conhecem o medo da morte porque não existe morte: quando a vida termina, passam o testemunho para o clone seguinte. Sem drama.
O problema é saber se a eternidade basta. Os neo-humanos de Houellebecq não conhecem a dor, o desencanto e tudo aquilo que define a nossa precária condição. Mas também não conhecem propriamente a felicidade. Apenas uma existência desabitada. Isto, naturalmente, cansa. E Daniel25 sente esse cansaço, resolvendo sair da sua gaiola dourada para conhecer o mundo humano que restou. Fatalmente, é tarde: os neo-humanos vivem no vazio e o vazio é o único sentimento que conhecem. O filósofo Schopenhauer estava errado: não se atinge a satisfação pelo simples apagamento do desejo vital. Atinge-se, simplesmente, a vacuidade.
O livro é audaz e o gosto de Houellebecq pelas descrições humanas, a começar pelas sexuais, revela o sentido paródico que trouxe sucesso e polêmica. Mas existe em "La Possibilité d'une Île" a desagradável sensação de que ele foi clonado de romances anteriores. Daniel1 é apenas uma adaptação do engenheiro informático de "Extensão", ou mesmo de Michel, o funcionário público de "Plataforma": a mesma depressão gentil, esse "detáchement" que começa por ser promessa de refúgio e termina em dor insuportável. E, claro, o cansaço civilizacional e a promessa de um futuro biologicamente perfeito é uma repetição de "Partículas Elementares".
O que não deixa de ser irônico: o mundo de Houellebecq é feito de esgotamento moral e intelectual. Mas esse esgotamento passou agora do papel para o autor, contaminando o último refúgio da criatividade.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

La Possibilité d'une Île
Autor:
Michel Houellebecq

Editora: Fayard

Quanto: € 22 (R$ 56); 486 págs.

Onde encontrar: Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/xx/11/ 3231-4555) ou pelo site www.amazon.fr


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