São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Crítica/"Muriel"

Estranheza de obra de Resnais desafia a passagem do tempo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É possível, no caso de "Muriel", começar por esse lugar-comum -"eis aí um filme que chega com mais de 40 anos de atraso"- com o qual se pretende enfatizar nossa categoria de país periférico.
O atraso, aliás, é o fundamento deste filme de Alain Resnais. O atraso ou antes o descompasso. Estamos em Boulogne, na Normandia, cidade destruída durante a Segunda Guerra e agora reconstruída. Há ruínas e prédios modernos, passado e futuro misturados. Lá Helène recebe Alphonse.
Saberemos que existiu entre eles um amor de juventude. Logo antes da guerra. O que aconteceu? Nem eles sabem direito, mas se afastaram. Helène permaneceu na cidade. Alphonse foi para a Argélia, onde viveu até pouco tempo atrás.
Que sabemos de um e de outro? Muito pouco. O que dizem e o que mostram. Helène é uma antiquária, vende os móveis em sua própria casa, o que significa viver em um edifício moderno atolada por velhos móveis -de antes da guerra.
Ou seja, eis o que há de irônico na afirmação de que este "filme nos chega com atraso". É que, em "Muriel", o tempo não passa, ou talvez não exista. Neste roteiro escrito por Jean Cayrol -mais próximo da linearidade do que "O Ano Passado em Marienbad" ou "Hiroshima Meu Amor", ainda que muito mais fragmentário-, é como se o tempo fosse criando camadas de experiência que se superpõem umas às outras. No entanto, a dor do passado não se perde nunca -não passa. Ela se desdobra, reflete-se nas roupas, nos objetos, nos gestos dos personagens, mas não se perde.
O segundo aspecto paradoxal envolvendo o tempo diz respeito ao próprio cinema. O filme é de 1963 e sucede a "Marienbad" na obra de Resnais. O começo dos anos 1960 é aquele em que a linguagem cinematográfica mais foi remexida, mais provocou e foi provocada. Não será absurdo dizer que, hoje, estamos 40 anos atrasados em relação a 1963 (o tempo não passa só para frente, afinal). Ou seja, a proposta de "Muriel", com sua estranheza (os cortes rápidos, a busca arbitrária de objetos, o comportamento estranho dos personagens) está à nossa frente o bastante para que este filme nos apareça hoje enigmático, provocador, atraente -em suma, muito moderno.

Solidão
Enquanto Helène e Alphonse não passam a limpo seu amor passado -porque é impossível passar a limpo, e porque o passado não se manifesta como tal- o enteado de Helène ora passeia com a sobrinha de Alphonse (que depois se revela sua amante), ora sai em visita a Muriel, sua noiva -que nunca vemos. No espaço e no tempo, "Muriel" é um filme da solidão, do deslocamento (todos ocupam um espaço indevido ou são ocupados por ele) -ali, o próprio da condição humana é o desencontro.
Visto hoje, o filme permite, ainda, alguns questionamentos. Exemplo: não seria "Muriel" um caso de abstração extremada? Não seria o ponto radical de uma estética inovadora na qual, como disse Eric Rohmer, abrem-se portas, mas portas que não dão em parte alguma? Dúvidas como essa nasceram nos 43 anos que nos separam da feitura do filme. Não existiriam na época. Talvez seja, afinal, uma enorme vantagem "Muriel" estar chegando a nós só agora.


MURIEL     

Direção: Alain Resnais
Distribuidora: Aurora (R$ 37,50)


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