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Crítica/"Muriel"
Estranheza de obra de Resnais desafia a passagem do tempo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
É possível, no caso de
"Muriel", começar por
esse lugar-comum
-"eis aí um filme que chega
com mais de 40 anos de atraso"- com o qual se pretende
enfatizar nossa categoria de
país periférico.
O atraso, aliás, é o fundamento deste filme de Alain Resnais.
O atraso ou antes o descompasso. Estamos em Boulogne, na
Normandia, cidade destruída
durante a Segunda Guerra e
agora reconstruída. Há ruínas e
prédios modernos, passado e
futuro misturados.
Lá Helène recebe Alphonse.
Saberemos que existiu entre
eles um amor de juventude. Logo antes da guerra. O que aconteceu? Nem eles sabem direito,
mas se afastaram. Helène permaneceu na cidade. Alphonse
foi para a Argélia, onde viveu
até pouco tempo atrás.
Que sabemos de um e de outro? Muito pouco. O que dizem
e o que mostram. Helène é uma
antiquária, vende os móveis em
sua própria casa, o que significa
viver em um edifício moderno
atolada por velhos móveis -de
antes da guerra.
Ou seja, eis o que há de irônico na afirmação de que este "filme nos chega com atraso". É que, em "Muriel", o tempo não
passa, ou talvez não exista. Neste roteiro escrito por Jean Cayrol -mais próximo da linearidade do que "O Ano Passado
em Marienbad" ou "Hiroshima
Meu Amor", ainda que muito
mais fragmentário-, é como se
o tempo fosse criando camadas
de experiência que se superpõem umas às outras. No entanto, a dor do passado não se perde nunca -não passa. Ela se
desdobra, reflete-se nas roupas, nos objetos, nos gestos dos
personagens, mas não se perde.
O segundo aspecto paradoxal
envolvendo o tempo diz respeito ao próprio cinema. O filme é
de 1963 e sucede a "Marienbad"
na obra de Resnais. O começo
dos anos 1960 é aquele em que
a linguagem cinematográfica
mais foi remexida, mais provocou e foi provocada. Não será
absurdo dizer que, hoje, estamos 40 anos atrasados em relação a 1963 (o tempo não passa só para frente, afinal). Ou seja, a
proposta de "Muriel", com sua
estranheza (os cortes rápidos, a
busca arbitrária de objetos, o
comportamento estranho dos
personagens) está à nossa frente o bastante para que este filme nos apareça hoje enigmático, provocador, atraente -em
suma, muito moderno.
Solidão
Enquanto Helène e Alphonse não passam a limpo seu
amor passado -porque é impossível passar a limpo, e porque o passado não se manifesta como tal- o enteado de Helène
ora passeia com a sobrinha de
Alphonse (que depois se revela
sua amante), ora sai em visita a
Muriel, sua noiva -que nunca
vemos. No espaço e no tempo,
"Muriel" é um filme da solidão,
do deslocamento (todos ocupam um espaço indevido ou são
ocupados por ele) -ali, o próprio da condição humana é o
desencontro.
Visto hoje, o filme permite,
ainda, alguns questionamentos. Exemplo: não seria "Muriel" um caso de abstração extremada? Não seria o ponto radical de uma estética inovadora
na qual, como disse Eric Rohmer, abrem-se portas, mas portas que não dão em parte alguma? Dúvidas como essa nasceram nos 43 anos que nos separam da feitura do filme. Não
existiriam na época. Talvez seja, afinal, uma enorme vantagem "Muriel" estar chegando a
nós só agora.
MURIEL
Direção: Alain Resnais
Distribuidora: Aurora (R$ 37,50)
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