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Crítica/livro/"Gomorra"
Escritor vê campo de concentração a céu aberto no sul da Itália
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM ROMA
Se "Gomorra" fosse apenas mais um romance-reportagem sobre uma
organização criminosa qualquer, não estaria fazendo todo
esse barulho. O livro de Roberto Saviano, 29, parte de uma exploração minuciosa dos meandros da Camorra para tentar
entender como funcionam os
mecanismos de economia e
violência globalizada. Faz um
salto do particular ao universal,
e, por isso, concerne não só a
uma região do sul da Itália, mas
a todo o mundo.
Sua imagem inicial, a chuva
de cadáveres que cai de um
contêiner içado por uma grua
no porto de Nápoles, remete
num curto-circuito às pilhas de
corpos de Auschwitz. No caso,
os mortos são chineses que migraram para trabalhar na Itália
por salários baixíssimos e pouparam o suficiente para que
seus corpos fossem congelados,
transportados e sepultados em
algum pedaço de terra na China. Não deviam ser vistos, mas
uma manobra mal feita os faz
desabar do contêiner no colo
do leitor. E não dá mais para
fingir que eles não estão ali.
Saviano não adota a perspectiva de um repórter investigativo que busca simplesmente
descrever uma trama criminosa. Seu relato mais se assemelha ao testemunho de quem
tem diante dos olhos um imenso campo de concentração a
céu aberto. Por isso a ênfase
reiterada na dificuldade de narrar o horror.
O livro acompanha de perto
as transformações e a modernização da velha máfia napolitana nos últimos 30 anos. A Camorra não existe, o que há são
clãs e cartéis que operam a logística de financiamento, produção e distribuição de mercadoria ilegal. Mas é na construção civil que a economia dos
clãs se sustenta, e aí é fundamental a gestão dos contratos
públicos e a interferência no
plano diretor das cidades.
O sucesso da empresa está na
adoção dos procedimentos do
capitalismo mais avançado sem
os entraves legais e burocráticos da chamada economia formal. Da periferia de Nápoles se
fazem negócios com a China e o
Leste Europeu, o norte da África e as Américas, por onde circulam têxteis e drogas, laticínios e armas, o que se imaginar.
Lendo-se "Gomorra" vem a
suspeita -ou a certeza- de que
tudo o que se veste, se come e se
consome hoje tem uma origem
espúria e sangrenta.
"A lógica do empreendimento criminoso, a mentalidade
dos boss coincide com o mais
extremo neoliberalismo. As regras ditadas, as regras impostas, são as do mercado, do lucro,
da vitória sobre todo concorrente. O resto é o zero, não vale
nada", diz Saviano no melhor
capítulo do livro, "Cimento Armado". Obviamente, nesse
contexto em que a vida não vale
nada, as quebras de contrato
são resolvidas com extrema
violência.
O livro começa com o vestido
de Angelina Jolie na entrega do
Oscar e termina com as montanhas de lixo acumuladas em
Nápoles e arredores, vistas recentemente nas TVs de todo o
mundo, que são o subproduto
rentável dessa economia, a
ponta final da cadeia.
Recordando-se de Pasolini,
Saviano diz: "Eu sei qual é a verdadeira Constituição do meu
tempo. Qual é a riqueza das empresas. Eu sei que a medida de
cada pilastra é o sangue dos outros. Eu sei e tenho provas. E
não poupo ninguém".
MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP
GOMORRA
Autor: Roberto Saviano
Tradução: Elaine Niccolai
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 39 (350 págs.)
Avaliação: ótimo
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