São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

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Crítica/livro/"Gomorra"

Escritor vê campo de concentração a céu aberto no sul da Itália

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM ROMA

Se "Gomorra" fosse apenas mais um romance-reportagem sobre uma organização criminosa qualquer, não estaria fazendo todo esse barulho. O livro de Roberto Saviano, 29, parte de uma exploração minuciosa dos meandros da Camorra para tentar entender como funcionam os mecanismos de economia e violência globalizada. Faz um salto do particular ao universal, e, por isso, concerne não só a uma região do sul da Itália, mas a todo o mundo.
Sua imagem inicial, a chuva de cadáveres que cai de um contêiner içado por uma grua no porto de Nápoles, remete num curto-circuito às pilhas de corpos de Auschwitz. No caso, os mortos são chineses que migraram para trabalhar na Itália por salários baixíssimos e pouparam o suficiente para que seus corpos fossem congelados, transportados e sepultados em algum pedaço de terra na China. Não deviam ser vistos, mas uma manobra mal feita os faz desabar do contêiner no colo do leitor. E não dá mais para fingir que eles não estão ali.
Saviano não adota a perspectiva de um repórter investigativo que busca simplesmente descrever uma trama criminosa. Seu relato mais se assemelha ao testemunho de quem tem diante dos olhos um imenso campo de concentração a céu aberto. Por isso a ênfase reiterada na dificuldade de narrar o horror.
O livro acompanha de perto as transformações e a modernização da velha máfia napolitana nos últimos 30 anos. A Camorra não existe, o que há são clãs e cartéis que operam a logística de financiamento, produção e distribuição de mercadoria ilegal. Mas é na construção civil que a economia dos clãs se sustenta, e aí é fundamental a gestão dos contratos públicos e a interferência no plano diretor das cidades.
O sucesso da empresa está na adoção dos procedimentos do capitalismo mais avançado sem os entraves legais e burocráticos da chamada economia formal. Da periferia de Nápoles se fazem negócios com a China e o Leste Europeu, o norte da África e as Américas, por onde circulam têxteis e drogas, laticínios e armas, o que se imaginar.
Lendo-se "Gomorra" vem a suspeita -ou a certeza- de que tudo o que se veste, se come e se consome hoje tem uma origem espúria e sangrenta.
"A lógica do empreendimento criminoso, a mentalidade dos boss coincide com o mais extremo neoliberalismo. As regras ditadas, as regras impostas, são as do mercado, do lucro, da vitória sobre todo concorrente. O resto é o zero, não vale nada", diz Saviano no melhor capítulo do livro, "Cimento Armado". Obviamente, nesse contexto em que a vida não vale nada, as quebras de contrato são resolvidas com extrema violência.
O livro começa com o vestido de Angelina Jolie na entrega do Oscar e termina com as montanhas de lixo acumuladas em Nápoles e arredores, vistas recentemente nas TVs de todo o mundo, que são o subproduto rentável dessa economia, a ponta final da cadeia.
Recordando-se de Pasolini, Saviano diz: "Eu sei qual é a verdadeira Constituição do meu tempo. Qual é a riqueza das empresas. Eu sei que a medida de cada pilastra é o sangue dos outros. Eu sei e tenho provas. E não poupo ninguém".


MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP


GOMORRA
Autor:
Roberto Saviano
Tradução: Elaine Niccolai
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 39 (350 págs.)
Avaliação: ótimo



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