São Paulo, sexta, 19 de dezembro de 1997.




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CRÍTICA
"Fantasias" é uma das maiores obras de Purcell

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Mais de 500 composições em apenas 36 anos de vida; sonatas, fantasias, música de câmara, música litúrgica, cantatas e óperas infalivelmente inspiradas, inspiradamente harmonizadas, "harmonizadamente" originais. Não estamos falando de Mozart, mas de Henry Purcell (1659-1695), o maior compositor inglês do século 17 e de todos os séculos. Suas "Fantasias" para violas, um dos pontos altos de toda sua obra, recebem agora uma gravação exemplar, nas mãos de Jordi Savall e do Hespèrion XX.
De G.F. Handel no século 18 a Edward Elgar no 19, e Benjamin Britten, Peter Maxwell Davies e Brian Ferneyhough, nos nossos dias, a lista de admiradores de Purcell é virtualmente o rol de compositores ingleses; e não precisaria ficar restrita à Inglaterra. Paradoxalmente, seu prestígio não se traduz em apreço popular, nem em seu próprio país.
Todos conhecem a ária suicida da rainha Dido, na ópera "Dido and Aeneas"; e é praticamente só o que conhecem. Nem as celebrações do bicentenário de nascimento, em 1995, ajudaram muito a melhorar a situação. Mas incitaram, ao menos, o lançamento de projetos como o do King's Consort, que gravou a música litúrgica completa, em mais de dez CDs, redimindo a nossa ignorância em grande estilo. Gravado em 1994, mas só agora chegando às lojas, o CD do Hespèrion XX é outro grande tributo à nossa insuficiência e à memória de Purcell.
São quinze peças, no total, incluindo dois "In Nomine" a seis e sete vozes, três fantasias a três e nove a quatro. Inclui ainda a "Fantasia sobre uma Nota", a cinco vozes, uma das composições mais luminosas e serenas do barroco, construída em torno a um "dó" da primeira viola-baixo, que soa imperturbável do início ao fim. Purcell é um compositor cuja originalidade parece se nutrir da técnica: quanto mais difícil o desafio, mais inventiva a solução. E sua inventividade soa quase sempre natural, necessária. A exceção fica por conta das tão famosas harmonias cromáticas, em que a música, aqui e ali, se entrega à experimentação e o compositor abandona a arte pela ciência da música.
Inversões, retrógrados, variações sobre um tema ou um baixo, sequências, imitações, fugatos: tudo isso se escuta nas "Fantasias", trabalhado com a audácia natural de um gênio de 21 anos. Mas nada disso explica o que há de mais tangível e ao mesmo tempo mais indecifrável na música, seu "tom" característico, que já se anuncia ao primeiro compasso. Tornou-se um clichê falar da melancolia de Purcell, que foi quase contemporâneo, afinal, do príncipe Hamlet. Mas "melancolia" -o afeto sem afeto, a dor pela perda não se sabe do quê- é uma metáfora insuficiente para essa música, que têm outros matizes. A morte, o acaso e o tempo; a passagem das coisas; a vaidade dos desejos; a felicidade da percepção; a fragilidade do que é bonito; a tranquilidade de um minuto: todos esses temas da poesia retornam, transfigurados, livres da palavra, na música de Purcell.
O catalão Jordi Savall e seu conjunto Hespèrion XX (favoritos da platéia de São Paulo, onde estiveram nos últimos dois anos) tocam as "Fantasias" com uma mistura de sobriedade e liberdade que já é, em si, uma interpretação, no sentido forte do termo. Para o ouvinte que chega a essa música pela primeira vez, talvez custe um pouco a se acostumar com o som das violas antigas, de cordas de tripa. Mas só um pouco; depois, não há outro que se iguale. A música vive em cada nota, respirando no ritmo irregular das arcadas. Claros e sombras colorem a polifonia, numa outra espécie de contraponto.
A morte de Purcell, aos 36 anos, é definida no "Dicionário Oxford de Música" como uma catástrofe nacional. "Nacional", na Inglaterra em 1938 queria dizer "do universo"; e as várias revisões e atualizações do verbete não viram necessidade de mudar o adjetivo. A Inglaterra não é mais a mesma, mas Purcell, sim, é cada vez mais ele mesmo, entregue à apreciação de um universo que nem sequer sonhou. Com Charpentier e Couperin, ele forma um triunvirato de compositores antigos redescobertos, em cujas feições se reconhece agora, inesperadamente, o rosto do nosso próprio tempo.

Disco: Fantasias for the Viols Regente: Jordi Savall Conjunto: Hespèrion XX Compositor: Henry Purcell Lançamento: Audivis Quanto: R$ 25, em média






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