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CRÍTICA
"Fantasias" é uma das maiores obras de Purcell
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Mais de 500 composições em
apenas 36 anos de vida; sonatas,
fantasias, música de câmara, música litúrgica, cantatas e óperas infalivelmente inspiradas, inspiradamente harmonizadas, "harmonizadamente" originais. Não estamos falando de Mozart, mas de
Henry Purcell (1659-1695), o
maior compositor inglês do século
17 e de todos os séculos. Suas
"Fantasias" para violas, um dos
pontos altos de toda sua obra, recebem agora uma gravação exemplar, nas mãos de Jordi Savall e do
Hespèrion XX.
De G.F. Handel no século 18 a
Edward Elgar no 19, e Benjamin
Britten, Peter Maxwell Davies e
Brian Ferneyhough, nos nossos
dias, a lista de admiradores de Purcell é virtualmente o rol de compositores ingleses; e não precisaria ficar restrita à Inglaterra. Paradoxalmente, seu prestígio não se traduz em apreço popular, nem em
seu próprio país.
Todos conhecem a ária suicida
da rainha Dido, na ópera "Dido
and Aeneas"; e é praticamente só
o que conhecem. Nem as celebrações do bicentenário de nascimento, em 1995, ajudaram muito a melhorar a situação. Mas incitaram,
ao menos, o lançamento de projetos como o do King's Consort, que
gravou a música litúrgica completa, em mais de dez CDs, redimindo
a nossa ignorância em grande estilo. Gravado em 1994, mas só agora
chegando às lojas, o CD do Hespèrion XX é outro grande tributo à
nossa insuficiência e à memória de
Purcell.
São quinze peças, no total, incluindo dois "In Nomine" a seis e
sete vozes, três fantasias a três e
nove a quatro. Inclui ainda a
"Fantasia sobre uma Nota", a
cinco vozes, uma das composições
mais luminosas e serenas do barroco, construída em torno a um
"dó" da primeira viola-baixo,
que soa imperturbável do início ao
fim. Purcell é um compositor cuja
originalidade parece se nutrir da
técnica: quanto mais difícil o desafio, mais inventiva a solução. E sua
inventividade soa quase sempre
natural, necessária. A exceção fica
por conta das tão famosas harmonias cromáticas, em que a música,
aqui e ali, se entrega à experimentação e o compositor abandona a
arte pela ciência da música.
Inversões, retrógrados, variações sobre um tema ou um baixo,
sequências, imitações, fugatos: tudo isso se escuta nas "Fantasias",
trabalhado com a audácia natural
de um gênio de 21 anos. Mas nada
disso explica o que há de mais tangível e ao mesmo tempo mais indecifrável na música, seu "tom"
característico, que já se anuncia ao
primeiro compasso. Tornou-se
um clichê falar da melancolia de
Purcell, que foi quase contemporâneo, afinal, do príncipe Hamlet.
Mas "melancolia" -o afeto sem
afeto, a dor pela perda não se sabe
do quê- é uma metáfora insuficiente para essa música, que têm
outros matizes. A morte, o acaso e
o tempo; a passagem das coisas; a
vaidade dos desejos; a felicidade da
percepção; a fragilidade do que é
bonito; a tranquilidade de um minuto: todos esses temas da poesia
retornam, transfigurados, livres
da palavra, na música de Purcell.
O catalão Jordi Savall e seu conjunto Hespèrion XX (favoritos da
platéia de São Paulo, onde estiveram nos últimos dois anos) tocam
as "Fantasias" com uma mistura
de sobriedade e liberdade que já é,
em si, uma interpretação, no sentido forte do termo. Para o ouvinte
que chega a essa música pela primeira vez, talvez custe um pouco a
se acostumar com o som das violas
antigas, de cordas de tripa. Mas só
um pouco; depois, não há outro
que se iguale. A música vive em cada nota, respirando no ritmo irregular das arcadas. Claros e sombras colorem a polifonia, numa
outra espécie de contraponto.
A morte de Purcell, aos 36 anos, é
definida no "Dicionário Oxford
de Música" como uma catástrofe
nacional. "Nacional", na Inglaterra em 1938 queria dizer "do
universo"; e as várias revisões e
atualizações do verbete não viram
necessidade de mudar o adjetivo.
A Inglaterra não é mais a mesma,
mas Purcell, sim, é cada vez mais
ele mesmo, entregue à apreciação
de um universo que nem sequer
sonhou. Com Charpentier e Couperin, ele forma um triunvirato de
compositores antigos redescobertos, em cujas feições se reconhece
agora, inesperadamente, o rosto
do nosso próprio tempo.
Disco: Fantasias for the Viols
Regente: Jordi Savall
Conjunto: Hespèrion XX
Compositor: Henry Purcell
Lançamento: Audivis
Quanto: R$ 25, em média
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