São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2001

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LITERATURA

Um dos principais autores norte-americanos comenta para a Folha o romance, que está sendo reeditado no Brasil

"Leviatã" é um livro sombrio", diz Auster

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Paul Auster está resfriado. Com a voz roufenha, interrompida por acessos de tosse, o escritor norte-americano diz que Nova York está fria, escura e chuvosa.
O tempo está perfeito para conversar sobre "Leviatã". Escrito em 1992, o quinto romance de Auster é seu texto mais sombrio. A opinião é dele mesmo. "É certamente o livro menos divertido que eu fiz", explica a voz rouca do outro lado do telefone.
Mesmo que não ache o livro engraçado, Auster diz que é um de seus favoritos e o que lhe deu mais projeção. Ainda assim, explica que seria incapaz de relê-lo. "Nunca reli nenhum de meus livros."
Se o acaso é a marca registrada da literatura desse escritor de 53 anos, não é por acaso que Auster está falando sobre "Leviatã".
É que a partir de segunda-feira, os leitores brasileiros terão a chance de reler essa história intrincada, que envolve um escritor-terrorista que explode miniaturas da Estátua da Liberdade em diversas partes dos Estados Unidos.
Publicado pela editora Best Seller em 1993, o romance volta às prateleiras em edição da Companhia das Letras, com capa nova e, muito mais importante, com nova e melhor tradução, a cargo de Rubens Figueiredo.
Foi para falar da "ressurreição" de "Leviatã" que Paul Auster interrompeu sua tarde de inverno nova-iorquino. Leia a seguir trechos da conversa dele com a Folha por telefone.

Folha - Como o sr. relaciona essa "nebulosidade" com o modo como observa a sociedade norte-americana, o Estado, o Leviatã?
Auster -
Claro que é um livro que discute a América e os americanos da minha geração. Há muita política nesse livro, mas não é um livro político. É sobre cada um. Como as pessoas se encontram e se perdem quando estão contra um determinado pano de fundo.

Folha - É aí que entram palavras como acaso, sorte, improbabilidade, as mais usadas para definir sua obra, não?
Auster -
Esse é o jeito que vejo o mundo funcionar. Coisas imprevisíveis acontecem o tempo todo conosco. Temos a consciência, a possibilidade de fazer escolhas, mas muitas vezes nosso desejo colide com algo de inesperado no mundo exterior que muda nosso curso. Acho que muito do meu trabalho fala sobre essas colisões entre o que está fora e o que está dentro. A isso eu chamo de acaso. Mesmo em "Leviatã" acontecem acidentes, coisas inesperadas.

Folha - Como o sr. enxerga "Leviatã" em relação a seus outros livros?
Auster -
É difícil dizer. Eles todos parecem conectados a mim, apesar de serem todos diferentes. Cada vez que termino um livro, eu penso que é o último. Digo pra mim: "É isso. Chega. Estou morto". Felizmente mudo de idéia. Quando menos espero, alguma coisa vem. E é sempre uma reação ao livro anterior.
No final, posso dizer, tanto de "Leviatã" quanto dos outros livros, que sempre me descubro no final. Eles podem estar usando roupas diferentes, mas são sempre eu mesmo.

Folha - Por que o sr. faz tantas referências aos diferentes modos de narrar em "Leviatã"?
Auster -
Acho que "Leviatã" é, de alguma maneira, um livro sobre a narrativa. A história é escrita na primeira pessoa. É um escritor falando sobre outro. Peter falando sobre Ben. Assim, Peter não sabe de tudo sobre o que fala. Ele perde muita coisa, se confunde muitas vezes. Até o fim do livro ele está tentando entender algumas coisas. Penso que, do ponto de vista narrativo, é um livro também sobre o conhecimento. Sobre o que sabemos, como sabemos e como podemos falar das coisas que estamos tentando entender.

Folha - Esse modo de organizar o livro faz com que, entre suas obras, esse seja o menos "adaptável" para o cinema, não?
Auster -
Tem razão. Na verdade, muitos já tentaram comprar os direitos de adaptação de "Leviatã" para o cinema, mas eu sempre disse não. Não creio que no modo de fazer cinema de hoje, no universo comercial do cinema, uma história dessa complexidade possa ser contada em duas horas. Não é uma história muito longa em número de páginas, mas é uma trama intrincada, com muitos personagens se sobrepondo. Seria muito difícil levar isso para o cinema. Eu não quero que alguém tente.

Folha - O sr. escreveu "Leviatã" em 1992. Em entrevista da época, o sr. disse que os Estados Unidos é um país com muita paranóia e hipocrisia, mas também um lugar maravilhoso, cheio de esperanças. O que mudou desde lá na opinião do sr.?
Auster -
Nada mudou. É um país contraditório. É extraordinariamente provedor de esperança a despeito de tantas coisas terríveis que acontecem por aqui. Não seria capaz de colocar isso tudo em uma idéia só.

Folha - O sr. acha mesmo que os Estados Unidos de 1992 são iguais aos de 2001?
Auster -
Bem, tivemos um bocado de democratas nos escritórios de Washington. Essa é uma mudança. Durante oito anos também assistimos os republicanos tentarem matar Bill Clinton. Fizeram tudo o que esteve ao alcance. Economicamente, acho que as coisas andaram muito bem por aqui. Agora, com os democratas deixando o poder, a situação está estremecida. Devemos nos preparar para tempos mais escuros, tanto economicamente quanto politicamente e socialmente.

Folha - Bem, é possível imaginar que o sr. votou para Al Gore, não?
Auster -
Sim, claro (risos).

Folha - E qual o sr. imagina que será o maior problema do governo "Bush Jr."?
Auster -
Eu não consigo nem falar. Estou tão deprimido com isso tudo. Parece uma caricatura. Essa gente toda de volta quando menos precisamos delas.

Folha - O seu amigo Don DeLillo, para quem "Leviatã" é dedicado, escreve no romance "Ruído Branco" que "quanto maior o avanço tecnológico, mais primitivo o medo". O que o sr. pensa disso, tendo em vista "Leviatã"?
Auster -
É uma frase bem afiada. É claro que quando falamos de armas e bombas com potencial de destruir o mundo, o medo fica realmente mais primitivo. Nos velhos tempos, não tínhamos essa escala de destruição. Nossos medos eram menores.

Folha - Don DeLillo retrata a América de modo paranóico. O sr. também cria, em "Leviatã", personagens com mania de perseguição. O sr. acredita que os Estados Unidos é um país paranóico?
Auster -
É um país com elementos paranóicos e outros não. Muita gente carrega por aqui medos de todas as espécies, sobre o desenvolvimento, sobre a comida que ingerem, sobre pessoas que carregariam armas no bolso. É um país em que existe gente que anda em lugares públicos com armas e que atira indiscriminadamente nas pessoas. Isso cria um ambiente de medo. Não sei como são as coisas no Brasil, mas imagino que sejam semelhantes. Nunca estive aí, mas um dia apareço para ver.


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