São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2001

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WALTER SALLES

A incrível história de Butch Cassidy e Sundance Kid na Patagônia

"Quando a lenda se torna realidade, imprima-se a lenda." Assim acabava "O Homem Que Matou o Facínora", de John Ford. Outros filmes sobre a distorção da história do Oeste americano bateram na mesma tecla, como "Um de Nós Morrerá", de Arthur Penn, ou "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood.
Vem mais lenha na fogueira. Deverá sair este ano um livro escrito pelo excelente escritor chileno Luis Sepúlveda sobre a história da Patagônia, que redefine a trajetória de Butch Cassidy e Sundance Kid na América Latina.
A história da mais famosa dupla de pistoleiros norte-americanos tornou-se imensamente popular graças ao filme dirigido por George Roy Hill, com Paul Newman e Robert Redford. Hill narra a odisséia de dois simpáticos fora-da-lei que são obrigados a fugir dos EUA e acabam morrendo emboscados na Bolívia.
Sepúlveda mostra que não foi bem assim. Só que a história real, neste caso, é bem mais interessante e surpreendente do que a lenda. A versão oficial é uma aventura despolitizada. Os cinco anos de pesquisas feitas por Sepúlveda ligam o banditismo aos movimentos sociais latino-americanos, uma leitura próxima daquela que é sustentada pelo historiador Eric Hobsbawm na Europa.
Ao escaparem dos Estados Unidos em 1901, acompanhados pela jovem professora Etta Place, Butch Cassidy e Sundance Kid aportaram em Buenos Aires. Detestaram a cidade. A capital argentina era mais cosmopolita do que eles tinham imaginado, e então se sentiram excessivamente expostos.
Foi então que ouviram falar do início da colonização da Patagônia. Compraram mil alqueires de terra com uma parte do dinheiro que haviam trazido, sem ver a propriedade que estavam adquirindo.
Antes de partir para a Patagônia, foram visitar Montevidéu. Foi na capital uruguaia que Butch Cassidy e Sundance Kid ouviram falar de um escritor americano -e notório alcoólatra- chamado Arthur Chapman. Chapman estava morando na Bolívia, de onde enviava histórias inteiramente surrealistas para o "Baltimore Journal".
Butch Cassidy e Sundance Kid viram em Chapman o homem que poderia interromper a perseguição dos caçadores de fora-da-lei que tentavam encontrá-los. Pouco tempo depois de um punhado de dólares trocar de mãos, o "Baltimore Journal" publicou um "furo" de Chapman: a história de dois ladrões de bancos americanos mortos em um tiroteio na Bolívia. Uma foto tão falsa quanto o texto dava credibilidade ao todo. É essa versão que inspirou o filme de Hill.
O caminho estava aberto para a viagem de Cassidy e Sundance até a Patagônia. Eles chegaram à área selvagem que haviam comprado e se apaixonaram por aquela geografia desconhecida. Construíram uma casa simples, de madeira -que existe até hoje-, e começaram a criar gado e ovelhas. Durante dois anos, viveram uma vida pacífica e sem sobressaltos.
Um único homem não comprou a história descrita por Chapman no "Baltimore Journal": Martin Sheffields, um jovem xerife de 20 e poucos anos. Julgava Butch Cassidy e Sundance Kid por demais inteligentes para caírem no tipo de emboscada narrada por Chapman.
Conduziu sua própria investigação e não demorou em encontrar os indícios que o levaram até a Patagônia. Chegou lá no mesmo momento em que Etta Place, a companheira de Butch Cassidy, descobriu que tinha câncer e decidiu voltar para se tratar nos Estados Unidos.
O confronto de Butch Cassidy, Sundance Kid e Martin Sheffields foi atípico. A dupla de bandidos nunca havia matado alguém. Sheffields já. Desarmou os seus adversários e, como sempre fizera até então, algemou suas presas e tomou o caminho de volta em direção a Buenos Aires.
Nunca chegou lá. Na estrada, acabou simpatizando com a dupla. Não os denunciou nem recolheu a recompensa pela captura daqueles que eram os homens mais procurados da América.
A exemplo de Butch Cassidy e de Sundance Kid, Martin Sheffields se encantou com a geografia física e humana da Patagônia. Viveu durante anos como fazendeiro e teve 11 filhos com mulheres da tribo indígena onas. Cinco desses filhos ainda estão vivos hoje, a mais nova com 77 anos de idade.
Dois anos depois do encontro com Martin Sheffields, a sorte de Butch Cassidy e Sundance viria a mudar. Na América, Etta Place encontrou por acidente um membro da velha gangue de Cassidy, Big Nose Flat, e acabou contando a ele o paradeiro dos ex-companheiros. Big Nose viajou até a Patagônia e exigiu da dupla um pedaço de suas terras, além de dinheiro.
Butch Cassidy e Sundance haviam investido tudo o que tinham na fazenda. Para que Big Nose não batesse com a língua nos dentes, os dois tiveram uma recaída: assaltaram o Banco de Londres. Durante o ataque, Big Nose rompeu o código moral imposto por Cassidy e matou o caixeiro. Big Nose ficou com a totalidade do roubo. Formou um novo bando. Não durou muito. Foi morto no ataque ao Banco Argentino, em Esquível, então a maior cidade da Patagônia.
O estrago causado pelo reaparecimento de Big Nose desestabilizou mais uma vez a vida de Butch Cassidy e Sundance Kid. Com a atenção gerada por essa nova onda de assaltos, tiveram de cair na clandestinidade. Fugiram para uma pequena cidade ao sul da Patagônia, Porvenir. Lá, moraram no segundo andar de um prédio que abrigava um dos mais antigos cinemas da Argentina, que pertencia a um homem chamado José Bohr. Bohr dirigira um dos primeiros filmes argentinos, "Casamento Gaúcho", um curta de oito minutos.
Bohr ficou amigo de Butch Cassidy e de Sundance Kid e lhes apresentou um outro personagem fascinante desta história, Antonio Soto. Imigrante espanhol, Soto era não só um exímio barbeiro, mas também um notório anarquista.
Soto se identificou imediatamente com os fora-da-lei. Convenceu-os a defender -e financiar- a causa anarquista que tomava corpo na Patagônia. O Banco de Londres pagou novamente a conta, assaltado por estranhos bandoleiros que gritavam ao final do roubo: "Viva la emancipación social!".
Um grande contingente de trabalhadores explorados pela indústria de lã aderiu ao movimento anarquista. O caldo engrossou e passou a preocupar os detentores do poder. Em 1915, a polícia argentina atirou em Punta Arenas contra grevistas do movimento. O saldo foi terrível : 3.000 mortos.
O massacre pôs o ponto final na permanência de Butch Cassidy e Sundance Kid na Patagônia argentina. Eles foram obrigados a fugir para o Chile. Foi lá, perto do estreito de Magalhães, ao lado da cidade de Angostura, que Butch Cassidy e Sundance Kid foram emboscados e mortos por carabineiros chilenos.
Um só homem foi solidário a eles até o fim: Martin Sheffields. Quando a polícia argentina lhe pediu para perseguir os dois pistoleiros na fronteira com o Chile, Sheffields disse não.
Viveu até 70 e pouco anos na Patagônia. Ninguém sabe como morreu. Quando seu esqueleto foi encontrado, Sheffields carregava os seus dois colts na mão. Foi enterrado no cemitério de uma pequena cidade, El Bolsón. Não há nome no seu túmulo.
Esta releitura do mito de Butch Cassidy e Sundance Kid mostra o quanto o ceticismo é necessário diante das versões oficiais da história. Mais, em breve, no livro de Sepúlveda.


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