|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
Tiro pela culatra
No dia 31 de dezembro,
comprei em Sevilha um livrinho de Juan Benet publicado
pelas edições Siruela em 2003: "A
Construção da Torre de Babel".
Sevilha tem duas torres célebres: a
Giralda, construída no século 12
como minarete e depois incorporada à catedral pelos católicos, e a
Torre do Ouro, erguida pelos árabes no início do século 13, como
parte do sistema de defesa da cidade, às margens do Guadalquivir. Ambas são mencionadas no
livro de Benet, que reúne dois ensaios do escritor morto há dez
anos: o que lhe dá o título e um
outro mais curto, "Sobre a Necessidade da Traição", que discorre
sobre os espiões.
Benet (1927-1993) foi um autor
experimental e um tanto secreto.
Praticamente desconhecido fora
da Espanha, foi um dos escritores
espanhóis mais sofisticados da segunda metade do século 20, em
torno do qual gravitava um punhado de jovens admiradores, entre os quais Javier Marías.
Uma estranha recorrência liga
os dois ensaios aparentemente
díspares deste pequeno livro póstumo: os atos de Deus e dos homens resultam sempre no oposto
das suas intenções.
Em "A Construção da Torre de
Babel", Benet faz uma análise minuciosa do quadro homônimo de
Brueghel exposto no Kunsthistoriches Museum, em Viena. Qualquer representação da Torre de
Babel pressupõe que a construção
já seja a sua ruína. O peso simbólico do título é incontornável. Todos conhecem a história.
Engenheiro de profissão, Benet
examina cada andar da torre
pintada por Brueghel para concluir que a própria estrutura ali
representada está fadada ao fracasso, é uma representação da
impossibilidade. A utopia é fruto
de uma estrutura em que cada
nova etapa vem romper com a
anterior. O pintor optou por uma
progressão telescópica do edifício,
em que cada andar tem novos
elementos ou dimensões que não
podiam ser previstos pelos andares anteriores, o que impede às gerações futuras a memória do projeto inicial e termina por estabelecer a confusão e o caos -ao contrário de uma estrutura helicoidal, em que uma rampa em progressão espiral contínua, com os
mesmos elementos como módulos, poderia ter se repetido até o
topo.
Há, porém, uma estrutura helicoidal no interior da torre de
Brueghel, como se o caos aparente
encobrisse o projeto original de
construção de um edifício perfeito, modular. E, de fato, o que provoca a ira de Deus diante da torre
é a ousadia de criação de uma sociedade perfeita. "O arroubo de
fúria de Iaweh não pode se justificar, como em outras ocasiões, pela desobediência de suas criaturas
-bastante ingênuas para pretender alcançar o céu com a cúspide de sua torre- mas pelo temor que lhe produzia um projeto
completo para culminar numa
sociedade perfeita", escreve Benet.
A reação de Iaweh é conhecida:
Deus cria uma multiplicidade de
línguas, de modo a fazer os homens, que falavam todos a mesma, se desentenderem, impossibilitando a construção da torre. O
interessante no ensaio de Benet é
que, partindo da análise da torre
como representação do mito de
uma língua única e fundadora,
ele acaba por mostrar que a ação
de Deus é um suicídio.
Todo povo acredita que os deuses falam a sua língua. Todos
acreditam que sua língua é a original. Na Bíblia, Deus fala hebraico mas os homens que constróem
a torre falam apenas "uma mesma língua". A Torre de Babel não
é, assim, um mito de origem para
os judeus mas, antes, uma parábola sobre a origem dos outros
povos. São os outros, os que falam
línguas diferentes do hebraico,
que sofrem essa segunda queda
do paraíso representada pelo fracasso da construção da torre.
Ao impedir que os homens
criem a sociedade perfeita representada pela torre, com uma única língua, Deus perde inadvertidamente o título de Todo-Poderoso. Doravante, cada língua terá
o seu próprio Deus, que falará a
sua própria língua, que será sempre a língua original. O mito da
torre é o suicídio do monoteísmo.
"Em Babel, não caíram e desapareceram apenas a torre e a linguagem universal; com elas também caiu o Deus único de um povo unido", escreve Benet.
Haveria, então, um certo sucesso humanista nesse fracasso, e
não é à toa que a representação
do mito tenha sido retomada pela
Reforma em sua luta contra o poder centralizado da Igreja em Roma. Benet não ignora essas associações históricas na análise que
faz do quadro de Brueghel mas, a
julgar pelo ensaio seguinte, o que
mais lhe interessa é o mecanismo
inerente da autotraição.
Em "Sobre a Necessidade da
Traição", tomando o exemplo de
dois casos de espionagem durante
a Segunda Guerra, Benet mostra
como as convicções do traidor
contra um determinado Estado
acabam servindo a esse mesmo
Estado.
O que mais intriga nos dois ensaios é a visão de que nos próprios
atos está contida a sua traição.
Assim como o Deus Todo-Poderoso não percebe a armadilha que
significa destruir a utopia dos homens, também os espiões servem,
em última instância, para reforçar a posteriori o espírito da nação contra a qual agiam. É como
se nesse raciocínio trágico de Benet estivesse implícita uma estética e um elogio do tiro pela culatra. Pois, assim como a torre, a
linguagem também quer alcançar o céu, o proibido. E é do seu
fracasso que nascem a literatura e a arte.
Texto Anterior: SP 450: "Urbânia" percorre o "outro lado" da cidade Próximo Texto: Panorâmica - Evento: Folha promove debate sobre "Narradores" Índice
|