São Paulo, terça-feira, 20 de janeiro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Tiro pela culatra

No dia 31 de dezembro, comprei em Sevilha um livrinho de Juan Benet publicado pelas edições Siruela em 2003: "A Construção da Torre de Babel". Sevilha tem duas torres célebres: a Giralda, construída no século 12 como minarete e depois incorporada à catedral pelos católicos, e a Torre do Ouro, erguida pelos árabes no início do século 13, como parte do sistema de defesa da cidade, às margens do Guadalquivir. Ambas são mencionadas no livro de Benet, que reúne dois ensaios do escritor morto há dez anos: o que lhe dá o título e um outro mais curto, "Sobre a Necessidade da Traição", que discorre sobre os espiões.
Benet (1927-1993) foi um autor experimental e um tanto secreto. Praticamente desconhecido fora da Espanha, foi um dos escritores espanhóis mais sofisticados da segunda metade do século 20, em torno do qual gravitava um punhado de jovens admiradores, entre os quais Javier Marías.
Uma estranha recorrência liga os dois ensaios aparentemente díspares deste pequeno livro póstumo: os atos de Deus e dos homens resultam sempre no oposto das suas intenções.
Em "A Construção da Torre de Babel", Benet faz uma análise minuciosa do quadro homônimo de Brueghel exposto no Kunsthistoriches Museum, em Viena. Qualquer representação da Torre de Babel pressupõe que a construção já seja a sua ruína. O peso simbólico do título é incontornável. Todos conhecem a história.
Engenheiro de profissão, Benet examina cada andar da torre pintada por Brueghel para concluir que a própria estrutura ali representada está fadada ao fracasso, é uma representação da impossibilidade. A utopia é fruto de uma estrutura em que cada nova etapa vem romper com a anterior. O pintor optou por uma progressão telescópica do edifício, em que cada andar tem novos elementos ou dimensões que não podiam ser previstos pelos andares anteriores, o que impede às gerações futuras a memória do projeto inicial e termina por estabelecer a confusão e o caos -ao contrário de uma estrutura helicoidal, em que uma rampa em progressão espiral contínua, com os mesmos elementos como módulos, poderia ter se repetido até o topo.
Há, porém, uma estrutura helicoidal no interior da torre de Brueghel, como se o caos aparente encobrisse o projeto original de construção de um edifício perfeito, modular. E, de fato, o que provoca a ira de Deus diante da torre é a ousadia de criação de uma sociedade perfeita. "O arroubo de fúria de Iaweh não pode se justificar, como em outras ocasiões, pela desobediência de suas criaturas -bastante ingênuas para pretender alcançar o céu com a cúspide de sua torre- mas pelo temor que lhe produzia um projeto completo para culminar numa sociedade perfeita", escreve Benet.
A reação de Iaweh é conhecida: Deus cria uma multiplicidade de línguas, de modo a fazer os homens, que falavam todos a mesma, se desentenderem, impossibilitando a construção da torre. O interessante no ensaio de Benet é que, partindo da análise da torre como representação do mito de uma língua única e fundadora, ele acaba por mostrar que a ação de Deus é um suicídio.
Todo povo acredita que os deuses falam a sua língua. Todos acreditam que sua língua é a original. Na Bíblia, Deus fala hebraico mas os homens que constróem a torre falam apenas "uma mesma língua". A Torre de Babel não é, assim, um mito de origem para os judeus mas, antes, uma parábola sobre a origem dos outros povos. São os outros, os que falam línguas diferentes do hebraico, que sofrem essa segunda queda do paraíso representada pelo fracasso da construção da torre.
Ao impedir que os homens criem a sociedade perfeita representada pela torre, com uma única língua, Deus perde inadvertidamente o título de Todo-Poderoso. Doravante, cada língua terá o seu próprio Deus, que falará a sua própria língua, que será sempre a língua original. O mito da torre é o suicídio do monoteísmo. "Em Babel, não caíram e desapareceram apenas a torre e a linguagem universal; com elas também caiu o Deus único de um povo unido", escreve Benet.
Haveria, então, um certo sucesso humanista nesse fracasso, e não é à toa que a representação do mito tenha sido retomada pela Reforma em sua luta contra o poder centralizado da Igreja em Roma. Benet não ignora essas associações históricas na análise que faz do quadro de Brueghel mas, a julgar pelo ensaio seguinte, o que mais lhe interessa é o mecanismo inerente da autotraição.
Em "Sobre a Necessidade da Traição", tomando o exemplo de dois casos de espionagem durante a Segunda Guerra, Benet mostra como as convicções do traidor contra um determinado Estado acabam servindo a esse mesmo Estado.
O que mais intriga nos dois ensaios é a visão de que nos próprios atos está contida a sua traição. Assim como o Deus Todo-Poderoso não percebe a armadilha que significa destruir a utopia dos homens, também os espiões servem, em última instância, para reforçar a posteriori o espírito da nação contra a qual agiam. É como se nesse raciocínio trágico de Benet estivesse implícita uma estética e um elogio do tiro pela culatra. Pois, assim como a torre, a linguagem também quer alcançar o céu, o proibido. E é do seu fracasso que nascem a literatura e a arte.


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