São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

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CINEMA/ESTRÉIAS

Ao lançar "Free Zone", diretor israelense afirma que é o momento de "propor um novo olhar sobre a região"

Chega de exotismo no Oriente Médio, diz Gitaï

LEONARDO CRUZ
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

A zona franca da Jordânia é a região no leste do país onde o livre comércio é permitido. Nela, jordanianos, israelenses, palestinos, egípcios e sírios, povos em constante atrito, se encontram para negociar carros usados. Para o cineasta Amos Gitaï, 55, a zona franca que dá título a seu filme é mais do que isso, "é uma parábola sobre um lugar onde as pessoas podem se encontrar, dialogar".
Com "Free Zone", que estréia hoje em São Paulo, Gitaï volta a usar a ficção para abordar a realidade das relações entre israelenses e palestinos e apresenta, como ele mesmo diz, "imagens diferentes das que vemos no noticiário, cenas de conflito, de violência".
Ao contar a história de uma israelense (Hana Laszlo), uma palestina (Hiam Abbass) e uma americana (Natalie Portman) que partem de carro para a zona franca, o diretor afirma que é a hora de "parar de fazer sensacionalismo, exotismo, com o conflito no Oriente Médio, de intoxicar nossa própria imagem" e "propor um novo olhar sobre a região".
Para Gitaï, o cinema é capaz de romper o "muro de equívocos e simplificações" sobre a questão histórica. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, de Tel Aviv, ele fala sobre seu filme e sobre Israel em um quadro político sem o premiê Ariel Sharon.

 

Folha - Seus personagens principais são uma americana, uma israelense e uma palestina. São símbolos de suas nações?
Amos Gitaï -
Isso seria simplismo demais. Meu filme é uma pequena história sobre três pessoas que encontram um pequeno objeto, que é um carro, e por meio desse objetivo encontram um jeito de se relacionar. Não diria que são símbolos, porque não faço esse tipo de cinema didático, mas essas três mulheres, de diferentes origens, se relacionam diretamente, não por porta-vozes oficiais, soldados ou terroristas, essas pessoas que nós vemos todos os dias.

Folha - E por que mulheres?
Gitaï -
Inicialmente, meus protagonistas seriam homens. Mas mudei isso porque acho que é o momento de levantarmos a questão sobre o papel dos homens como governantes e atores políticos da região -eles têm sido generais e homens-bomba muito bem-sucedidos. Talvez as mulheres possam mostrar algo diferente.

Folha - Como você avalia a situação atual no Oriente Médio, já num cenário pós-Sharon?
Gitaï -
Sharon deixa uma grande marca, porque saímos de um período muito otimista após os acordos de Oslo [1993], quando havia a crença de que estávamos em uma espécie de utopia, em que todas as barreiras cairiam e haveria amor eterno entre israelenses e palestinos. Depois, como um paciente maníaco-depressivo, entramos na fase terrível da nova Intifada. Sharon, ao agir de forma unilateral e retirar as forças israelenses de Gaza, disse: "Não acredito na grande utopia nem na grande depressão. Vamos encontrar um meio termo".
Isso criou um novo espaço, uma nova dinâmica. Agora, a questão que fica, quando toda a região entrará em eleições (os palestinos na semana que vem, e os israelenses em alguns meses), é: para onde isso vai? Haverá passos progressivos rumo à reconciliação ou voltará para a violência? Esta região é muito interessante, creio, porque é totalmente imprevisível.

Folha - E você vê alguma figura política que possa ocupar o espaço de Sharon?
Gitaï -
Inicialmente Israel tinha líderes nascidos na Europa, em ambientes em que os judeus eram minoria, muitas vezes perseguidos, como [David] Ben-Gurion e Golda Meir. Depois vieram os líderes como [Yitzhak] Rabin e Sharon, nascidos antes da existência de Israel, mas que cresceram dentro do Estado de Israel. Agora, o poder se move para uma nova geração, que nasceu e cresceu em Israel, que tem mais o perfil de gerente, não tão interessada em deixar suas visões de poder marcadas na história.

Folha - O mesmo acontece com a Autoridade Palestina...
Gitaï -
Sim. Toda a região passa por uma renovação. A questão é se, como em "Free Zone", nós palestinos e israelenses vamos discutir para sempre e chatear e afugentar todo mundo (risos) ou se vamos encontrar um jeito de chegar a um acordo.

Folha - O que aconteceu com a cena do beijo de Natalie Portman no Muro das Lamentações? Não está no filme.
Gitaï -
Essa história é curiosa. Natalie estava no carro, perto do ator israelense Aki Avni, e os paparazzi tiraram fotos dos dois de um ângulo que parecia que eles estavam muito perto um do outro, insinuando um beijo. E alguns religiosos se sentiram ofendidos com isso.

Folha - Não houve a cena do beijo, então?
Gitaï -
Não, não. E o mundo inteiro disse que os dois estavam se beijando no Muro das Lamentações. O "New York Post" fez uma matéria de página inteira que dizia: "Beijos não-kosher perto do Muro das Lamentações" (risos).

Folha - Em seu filme, em uma cena em que as mulheres estão no carro, há uma fusão entre tempo e espaço. Em que momento você decidiu usar esse efeito? Na filmagem ou na montagem?
Gitaï -
Na montagem. Para mim, cada estágio do filme é uma forma de questionar meu próprio trabalho. Quando escrevo, quando filmo e quando edito. É uma forma de reavaliar conclusões da etapa anterior. Estava interessado em criar um flashback que transmitisse a sensação que temos quando estamos num carro e vemos uma paisagem que nos desperta outros pensamentos. Vi que nessa cena poderia reproduzir essa sensação, fundir muitas camadas e compor uma outra realidade.

Folha - A forma como você filma a Jordânia lembra a forma como Abbas Kiarostami filma Teerã em "Dez". Ele é uma influência?
Gitaï -
Kiarostami é um dos diretores que eu respeito. Alguns críticos gostam de dividir os diretores de acordo com bandeiras, como se estivéssemos na ONU. Mas acho que há coisas em comum entre mim, Kiarostami, Hou Hsiao-Hsien e [Takeshi] Kitano. Principalmente na forma como nós mostramos nossos países. Somos uma grande família de diretores, cada um em seu canto, em sua língua, criando uma linguagem cinematográfica em comum.

Folha - Estão sob a mesma bandeira...
Gitaï -
Acredito que sim. É o mesmo caso de diretores do passado com quem tenho afinidade, como [Rainer Werner] Fassbinder e Glauber Rocha. São pessoas que querem mostrar as várias faces de seu país e de sua cultura, pesquisando novas formas e novas linguagens. Em certa medida, cada filme é um laboratório.


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