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CINEMA/ESTRÉIAS
Ao lançar "Free Zone", diretor israelense afirma que é o momento de "propor um novo olhar sobre a região"
Chega de exotismo no Oriente Médio, diz Gitaï
LEONARDO CRUZ
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA
A zona franca da Jordânia é a região no leste do país onde o livre
comércio é permitido. Nela, jordanianos, israelenses, palestinos,
egípcios e sírios, povos em constante atrito, se encontram para
negociar carros usados. Para o cineasta Amos Gitaï, 55, a zona
franca que dá título a seu filme é
mais do que isso, "é uma parábola
sobre um lugar onde as pessoas
podem se encontrar, dialogar".
Com "Free Zone", que estréia
hoje em São Paulo, Gitaï volta a
usar a ficção para abordar a realidade das relações entre israelenses e palestinos e apresenta, como
ele mesmo diz, "imagens diferentes das que vemos no noticiário,
cenas de conflito, de violência".
Ao contar a história de uma israelense (Hana Laszlo), uma palestina (Hiam Abbass) e uma
americana (Natalie Portman) que
partem de carro para a zona franca, o diretor afirma que é a hora
de "parar de fazer sensacionalismo, exotismo, com o conflito no
Oriente Médio, de intoxicar nossa
própria imagem" e "propor um
novo olhar sobre a região".
Para Gitaï, o cinema é capaz de
romper o "muro de equívocos e
simplificações" sobre a questão
histórica. Na entrevista a seguir,
concedida por telefone, de Tel
Aviv, ele fala sobre seu filme e sobre Israel em um quadro político
sem o premiê Ariel Sharon.
Folha - Seus personagens principais são uma americana, uma israelense e uma palestina. São símbolos de suas nações?
Amos Gitaï - Isso seria simplismo
demais. Meu filme é uma pequena história sobre três pessoas que
encontram um pequeno objeto,
que é um carro, e por meio desse
objetivo encontram um jeito de se
relacionar. Não diria que são símbolos, porque não faço esse tipo
de cinema didático, mas essas três
mulheres, de diferentes origens,
se relacionam diretamente, não
por porta-vozes oficiais, soldados
ou terroristas, essas pessoas que
nós vemos todos os dias.
Folha - E por que mulheres?
Gitaï - Inicialmente, meus protagonistas seriam homens. Mas
mudei isso porque acho que é o
momento de levantarmos a questão sobre o papel dos homens como governantes e atores políticos
da região -eles têm sido generais
e homens-bomba muito bem-sucedidos. Talvez as mulheres possam mostrar algo diferente.
Folha - Como você avalia a situação atual no Oriente Médio, já num
cenário pós-Sharon?
Gitaï - Sharon deixa uma grande
marca, porque saímos de um período muito otimista após os
acordos de Oslo [1993], quando
havia a crença de que estávamos
em uma espécie de utopia, em que
todas as barreiras cairiam e haveria amor eterno entre israelenses e
palestinos. Depois, como um paciente maníaco-depressivo, entramos na fase terrível da nova Intifada. Sharon, ao agir de forma
unilateral e retirar as forças israelenses de Gaza, disse: "Não acredito na grande utopia nem na
grande depressão. Vamos encontrar um meio termo".
Isso criou um novo espaço, uma
nova dinâmica. Agora, a questão
que fica, quando toda a região entrará em eleições (os palestinos na
semana que vem, e os israelenses
em alguns meses), é: para onde isso vai? Haverá passos progressivos rumo à reconciliação ou voltará para a violência? Esta região é
muito interessante, creio, porque
é totalmente imprevisível.
Folha - E você vê alguma figura
política que possa ocupar o espaço
de Sharon?
Gitaï - Inicialmente Israel tinha
líderes nascidos na Europa, em
ambientes em que os judeus eram
minoria, muitas vezes perseguidos, como [David] Ben-Gurion e
Golda Meir. Depois vieram os líderes como [Yitzhak] Rabin e
Sharon, nascidos antes da existência de Israel, mas que cresceram dentro do Estado de Israel.
Agora, o poder se move para uma
nova geração, que nasceu e cresceu em Israel, que tem mais o perfil de gerente, não tão interessada
em deixar suas visões de poder
marcadas na história.
Folha - O mesmo acontece com a
Autoridade Palestina...
Gitaï - Sim. Toda a região passa
por uma renovação. A questão é
se, como em "Free Zone", nós palestinos e israelenses vamos discutir para sempre e chatear e afugentar todo mundo (risos) ou se
vamos encontrar um jeito de chegar a um acordo.
Folha - O que aconteceu com a cena do beijo de Natalie Portman no
Muro das Lamentações? Não está
no filme.
Gitaï - Essa história é curiosa.
Natalie estava no carro, perto do
ator israelense Aki Avni, e os paparazzi tiraram fotos dos dois de
um ângulo que parecia que eles
estavam muito perto um do outro, insinuando um beijo. E alguns religiosos se sentiram ofendidos com isso.
Folha - Não houve a cena do beijo, então?
Gitaï - Não, não. E o mundo inteiro disse que os dois estavam se
beijando no Muro das Lamentações. O "New York Post" fez uma
matéria de página inteira que dizia: "Beijos não-kosher perto do
Muro das Lamentações" (risos).
Folha - Em seu filme, em uma cena em que as mulheres estão no
carro, há uma fusão entre tempo e
espaço. Em que momento você decidiu usar esse efeito? Na filmagem
ou na montagem?
Gitaï - Na montagem. Para mim,
cada estágio do filme é uma forma
de questionar meu próprio trabalho. Quando escrevo, quando filmo e quando edito. É uma forma
de reavaliar conclusões da etapa
anterior. Estava interessado em
criar um flashback que transmitisse a sensação que temos quando estamos num carro e vemos
uma paisagem que nos desperta
outros pensamentos. Vi que nessa
cena poderia reproduzir essa sensação, fundir muitas camadas e
compor uma outra realidade.
Folha - A forma como você filma a
Jordânia lembra a forma como Abbas Kiarostami filma Teerã em
"Dez". Ele é uma influência?
Gitaï - Kiarostami é um dos diretores que eu respeito. Alguns críticos gostam de dividir os diretores
de acordo com bandeiras, como
se estivéssemos na ONU. Mas
acho que há coisas em comum
entre mim, Kiarostami, Hou
Hsiao-Hsien e [Takeshi] Kitano.
Principalmente na forma como
nós mostramos nossos países. Somos uma grande família de diretores, cada um em seu canto, em
sua língua, criando uma linguagem cinematográfica em comum.
Folha - Estão sob a mesma bandeira...
Gitaï - Acredito que sim. É o
mesmo caso de diretores do passado com quem tenho afinidade,
como [Rainer Werner] Fassbinder e Glauber Rocha. São pessoas
que querem mostrar as várias faces de seu país e de sua cultura,
pesquisando novas formas e novas linguagens. Em certa medida,
cada filme é um laboratório.
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