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CARLOS HEITOR CONY
Elis Regina e as Guerras Púnicas
Amigo meu, dos mais queridos, acusa-me de sempre falar nas Guerras Púnicas quando
estou sem assunto e, pior do que
isso, quando tenho um bom assunto pela frente. Dou o pescoço à
forca: é verdade e, mais do que
verdade, é uma necessidade de
minha parte.
Daí não se conclui que sou entendido em Guerras Púnicas. Sei
o básico, que todos aprendemos
nas escolas de primeiro grau:
houve três Guerras Púnicas, mas
somente duas contam realmente
para a história. Sendo duas, acredito que foram a primeira e a segunda. Nada ou pouco sei mais
do que isso.
Pode parecer pouco, pouquíssimo, mas, em termos de conhecimentos gerais, já é alguma coisa.
Posso estar falando de filosofia
quântica, do peso dos astros, da
taxa de câmbio na Austrália ou
das cuecas de dom João 6º (se é
que ele usava cuecas). Sempre
dou um jeito de citar as Guerras
Púnicas, as duas simultaneamente (não as três), para mostrar a
extensão das minhas informações
ou deformações culturais, escassas as primeiras, pródigas as segundas.
Nasceu em mim um certo cansaço, diria até um desânimo,
quando me pedem entrevistas ou
declarações sobre qualquer tema
ou situação. São estudantes geralmente, ou colegas de ofício, que,
mal informados, acreditam que
eu tenha alguma luz a derramar
sobre os rumos das democracias
ocidentais, por exemplo, ou sobre
o mistério das mulheres orientais.
Evidente que pouco ou nada entendo de ambas as coisas, mas entendendo ou não, dou um jeito de
começar a dar opinião citando as
Guerras Púnicas.
Pasmo e, ao mesmo tempo, curiosidade. Vinte dos dez entrevistadores nunca ouviram falar em
tais guerras e me acreditam louco
ou arrogante. Vai lá: eles têm um
pouco ou têm muita razão. Venho descobrindo que, para a
maioria daqueles que estão no
brinquedo cultural, o mundo começou a existir a partir de Elis
Regina. Antes dela, era o caos,
nem o espírito de Deus pairava
sobre as águas, como diz o Gênesis.
Todo o passado do homem e da
matéria teve início quando a extraordinária "Pimentinha" deixou de gravar um repertório cafona e começou a sua carreira de
maior cantora da música popular
brasileira. Foi o "fiat lux" inicial
que dissipou as trevas e deu o
pontapé inicial para começar a
história universal.
Bem verdade que, de acordo
com outras gentes e culturas, as
hégiras costumam variar, basta
dizer que há datas antes e depois
de Cristo -uma forma de contar
o tempo que muitos povos adotaram até o momento em que Elis
Regina deu uma banana para
tangos e boleros e começou a cantar o seu repertório genial.
Outro dia, um pesquisador quis
saber se era mesmo verdade que,
no passado mais remoto da humanidade, um escritor havia sido
assassinado no bairro da Piedade, aqui no Rio. Ele só sabia de
um escriba que nem assassinado
fora, mas se suicidara, um tal de
Pedro Neves.
Com a delicadeza possível, falei
que não havia nenhum Pedro Neves que tivesse deixado obra notável, havia um Pedro Nava, que
realmente se suicidara, mas houvera um outro que fora assassinado em Piedade, escrevera um livro sobe a Guerra de Canudos
-e, antes que ele perguntasse
que guerra era essa, fiz questão de
esclarecer que não se tratava das
Guerras Púnicas, nem da primeira nem da segunda nem da terceira.
Pergunta mais objetiva foi sobre a própria Elis Regina e a valsa
"Fascinação", gravada por ela.
Segundo o entrevistador, a intérprete era também autora da letra
e da música. Lembrei que Carlos
Galhardo lançara a mesma valsa
com a mesma letra antes de Elis
Regina nascer. Atônito, ouvi do
outro lado da linha: "Como pode?".
Não podia, é claro. O mundo começara com ela, nada havia antes, tudo se amontoava sem lógica
nem cronologia, os dinossauros,
Pedro Álvares Cabral, a bomba
atômica, Jesus Cristo e Che Guevara, tudo isso se amontoava na
massa anônima e informe anterior à criação do universo e da
Elis Regina.
Ficou difícil encaixar as Guerras Púnicas na questão levantada
pelo entrevistador. Faltou-me arte e saco para arranjar um gancho que me abrisse espaço para a
inserção que, mais do que nunca,
me pareceu necessária e urgente.
Vim lá de trás, falei que antes de
Elis Regina os sumérios já haviam
inventado a roda, roda que tanto
rodou e roda até hoje, nos carros
de combate que serviram a Amílcar e Aníbal Barca nas Guerras
Púnicas, até nas motos dos entregadores de pizza na fase DER, ou
seja, "depois de Elis Regina".
Para complicar mais ainda, e
apesar de ter errado sozinho, fiz
um "erramos" logo após a informação. Não, nas Guerras Púnicas, pelo menos naquela em que
Aníbal se destacou, ele atravessou
o Alpes sem carros e sem rodas,
mas em cima de elefantes. Pedi
desculpa pelo erro. Fui desculpado.
Daí em diante, percebi que não
estava agradando. O sujeito pediu que repetisse a história dos
elefantes, ao tomar suas notas
com as minhas respostas, trocou o
Alpes pelo Andes mas não dei importância. Fiz apenas questão de
deixar bem claro: "Olha, pode
anotar aí: considero a Elis Regina
a maior de todos os tempos. Ela
também inventou a roda".
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