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Livros - Crítica/memória
Biografia recria na África os anos perdidos de Arthur Rimbaud
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
A biografia de um escritor, dizem, é sua obra.
Quando se trata de um
poeta, reconhecer nas entrelinhas de versos não raro obscuros as marcas de uma existência distinta, não de todo coincidente com os fatos registrados
na cronologia, as marcas, enfim, da vida mais rica que os leitores invejariam, torna-se uma
verdadeira viagem. Além do caráter eventualmente lapidar de
algumas metáforas aqui, de rimas felizes ali, é isso que traz de
volta, de um modo (no bom
sentido) vicioso, os leitores a
seus poemas.
Quando, mal saído da idade
que hoje em dia se "reifica" sob
o nome de adolescência, o poeta consumado Arthur Rimbaud
(1854-91) abandonou seu ofício
e tomou um vapor rumo ao
Áden, o ponto onde o Chifre da
África quase toca a península
Arábica, e deixou atrás de si
uma obra tão pequena quanto
realizada. Como poeta, sua trajetória havia sido vertiginosa e,
numa época durante a qual os
padrões da escrita se transformavam rapidamente, ele, captando no ar a direção que a poesia seguiria e correndo por fora,
chegara onde queria antes dos
demais.
Começo como inovador
Seguramente, já ter começado como um inovador, não tendo que se livrar nem do peso
morto de um passado pessoal
nem de uma afeição por aquilo
que nem tivera tempo de
aprender, esse fato o ajudou.
Não é razão, porém, para negar-lhe a genialidade. Seja como for, é o evento raro de que
alcançasse o ponto final dessa
carreira antes mesmo de iniciar
a vida adulta, ou seja, a raridade
de sua impaciência, isso o converteu depois em ídolo fundador daquilo que o século 20 literário teve de mais interessante e de mais idiota.
E, assim, além do que continuará atraindo leitores de verdade, ele nos legou dois enigmas: o dos motivos que o levaram a parar de escrever e o de
sua vida subseqüente que, segundo os padrões atuais (não
necessariamente os de seu
tempo), foram originais e
cheios de aventura.
O problema é que, sem o senso de oportunidade dos dias
atuais, ele talvez não tenha entendido que o sucesso comercial futuro melhoraria substancialmente caso tivesse se dado
ao trabalho de registrar com o
próprio punho seus anos africanos de mercador, de vendedor de armas etc. Ou talvez,
ciente de quanta curiosidade
isso despertaria um dia, preferiu impedir que sua maturidade banal afogasse a obra que, à
maneira antiga, talvez ainda
prezasse. Não há como saber.
Escassez de informações
Tirando, no entanto, água de
pedra, Charles Nicholl, um perito pós-moderno no gênero
criado por Plutarco, o da biografia, resolveu juntar imaginação e empatia a escassez de informações e reconstruir os
anos perdidos, de Rimbaud,
acrescentando-lhes dados descritivos e paisagísticos levantados em leituras e viagens, bem
como uma certa interpretação
criativa dos poemas pregressos
nos quais busca entrever padrões de pensamento e percepção que se aplicariam às circunstâncias pós-poéticas.
O que resulta desse empenho
talvez não responda as perguntas pertinentes, mas é fluente,
imaginativo, pitorescamente
descritivo e longo o bastante
para entreter aventureiros sedentários. Os insatisfeitos e os
preguiçosos poderão sempre
voltar, para uma viagem de outro tipo, às linhas de "O Barco
Bêbado", "Iluminações" e
"Uma Temporada no Inferno".
RIMBAUD NA ÁFRICA
Autor: Charles Nicholl
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 59,90 (480 págs.)
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