São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 2007

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Livros - Crítica/memória

Biografia recria na África os anos perdidos de Arthur Rimbaud

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

A biografia de um escritor, dizem, é sua obra.
Quando se trata de um poeta, reconhecer nas entrelinhas de versos não raro obscuros as marcas de uma existência distinta, não de todo coincidente com os fatos registrados na cronologia, as marcas, enfim, da vida mais rica que os leitores invejariam, torna-se uma verdadeira viagem. Além do caráter eventualmente lapidar de algumas metáforas aqui, de rimas felizes ali, é isso que traz de volta, de um modo (no bom sentido) vicioso, os leitores a seus poemas.
Quando, mal saído da idade que hoje em dia se "reifica" sob o nome de adolescência, o poeta consumado Arthur Rimbaud (1854-91) abandonou seu ofício e tomou um vapor rumo ao Áden, o ponto onde o Chifre da África quase toca a península Arábica, e deixou atrás de si uma obra tão pequena quanto realizada. Como poeta, sua trajetória havia sido vertiginosa e, numa época durante a qual os padrões da escrita se transformavam rapidamente, ele, captando no ar a direção que a poesia seguiria e correndo por fora, chegara onde queria antes dos demais.

Começo como inovador
Seguramente, já ter começado como um inovador, não tendo que se livrar nem do peso morto de um passado pessoal nem de uma afeição por aquilo que nem tivera tempo de aprender, esse fato o ajudou.
Não é razão, porém, para negar-lhe a genialidade. Seja como for, é o evento raro de que alcançasse o ponto final dessa carreira antes mesmo de iniciar a vida adulta, ou seja, a raridade de sua impaciência, isso o converteu depois em ídolo fundador daquilo que o século 20 literário teve de mais interessante e de mais idiota.
E, assim, além do que continuará atraindo leitores de verdade, ele nos legou dois enigmas: o dos motivos que o levaram a parar de escrever e o de sua vida subseqüente que, segundo os padrões atuais (não necessariamente os de seu tempo), foram originais e cheios de aventura.
O problema é que, sem o senso de oportunidade dos dias atuais, ele talvez não tenha entendido que o sucesso comercial futuro melhoraria substancialmente caso tivesse se dado ao trabalho de registrar com o próprio punho seus anos africanos de mercador, de vendedor de armas etc. Ou talvez, ciente de quanta curiosidade isso despertaria um dia, preferiu impedir que sua maturidade banal afogasse a obra que, à maneira antiga, talvez ainda prezasse. Não há como saber.

Escassez de informações
Tirando, no entanto, água de pedra, Charles Nicholl, um perito pós-moderno no gênero criado por Plutarco, o da biografia, resolveu juntar imaginação e empatia a escassez de informações e reconstruir os anos perdidos, de Rimbaud, acrescentando-lhes dados descritivos e paisagísticos levantados em leituras e viagens, bem como uma certa interpretação criativa dos poemas pregressos nos quais busca entrever padrões de pensamento e percepção que se aplicariam às circunstâncias pós-poéticas.
O que resulta desse empenho talvez não responda as perguntas pertinentes, mas é fluente, imaginativo, pitorescamente descritivo e longo o bastante para entreter aventureiros sedentários. Os insatisfeitos e os preguiçosos poderão sempre voltar, para uma viagem de outro tipo, às linhas de "O Barco Bêbado", "Iluminações" e "Uma Temporada no Inferno".


RIMBAUD NA ÁFRICA    
Autor: Charles Nicholl
Tradução: Mauro Pinheiro
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 59,90 (480 págs.)


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