São Paulo, terça-feira, 20 de fevereiro de 2001

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Federico Andahazi celebrizou-se por tratar em "O Anatomista" da descoberta do clitóris

Maquiavel não passou por aqui

Patrícia Santos - 20.ago.97/Folha Imagem
Federico Andahazi, escritor e psicanalista argentino, que agora se lança sobre o clássico da política, após ter explorado, em romances, o corpo das mulheres e a literatura gótica


Escritor diz que tentou, mas foi impossível adaptar as idéias do pensador à América Latina de Menem e Collor, "onde a ficção compete com a realidade"

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Como seria a cara de um personagem que fosse "uma espécie de Frankenstein, feito com pedaços de Carlos Menem, de Collor, de Alberto Fujimori, de Abdallá Bucaram, de Salinas de Gortari"?
O escritor argentino Federico Andahazi, 37, montou as partes dessa criatura, deu-lhe vida e um papel, o de protagonista, em seu novo romance, "El Príncipe", uma mistura de realismo mágico com sátira política.
O anti-herói de Andahazi nasce num ritual diabólico em algum lugar da Cordilheira dos Andes e é criado no meio de outros filhos do demônio: um sapo, uma serpente e uma formiga. Atingida a maioridade, desce das alturas geladas para Buenos Aires -ou qualquer capital latino-americana, onde rapidamente galga o posto de presidente do país.
"El Príncipe" acaba de sair na Argentina, mas ainda não tem previsão de lançamento no Brasil. O romance é a mais nova criação do escritor que, há quatro anos, celebrizou-se por contar a história de um médico do século 16 que "descobre" o órgão feminino do prazer, em "O Anatomista".
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Andahazi deu à Folha, de Buenos Aires.

Folha - O livro é uma sátira política sob a lente do realismo mágico?
Federico Andahazi -
"El Príncipe" é uma fábula inspirada na realidade política de nossos países. Quando digo "realidade", em relação à América Latina, me vejo obrigado a fazer uso das aspas, pois me parece que ela está constituída por uma sucessão de acontecimentos nascidos da mais incrível ficção fantástica.
Acho que o realismo mágico é um paradoxo. Seguramente -e quem sabe para meu pesar- "El Príncipe" tem algum parentesco com o que se costumou chamar de realismo mágico. Eu gostaria de ser um sujeito completamente amoral, sem me submeter a norma nenhuma. Mas todos estamos atravessados pela moral cristã. E o mesmo acontece com as tradições literárias. A literatura não se faz com declarações de princípios.

Folha - A literatura latino-americana é muito rica em retratos de ditadores -podemos citar Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Miguel Ángel Asturias e, mais recentemente, Vargas Llosa. Você foi influenciado por esses livros?
Andahazi -
Toda essa saga de romances tem sua origem em "Tirano Banderas", do espanhol Valle-Inclán (1866-1936). Seria ingrato não reconhecer que tento me refugiar nessa tradição de "El Señor Presidente" (Ángel Asturias), "Eu, o Supremo" (Roa Bastos) e "A Festa do Bode" (Vargas Llosa).
Mas com quem me sinto mais em dívida é com "O Outono do Patriarca". Como Gabriel García Márquez retratou o arquétipo de ditador em decadência, eu, modestamente, me propus pintar outro arquétipo, os presidentes pós-ditatoriais. Diria que, desde Collor, passando por Bucaram, Fujimori, Salinas de Gortari ou Menem, todos esses personagens são de uma riqueza literária proporcional à pobreza de nossos países. Parecem fugidos da pena de um romancista maléfico. E parece que o nosso destino também está sendo escrito por um dramaturgo que não gosta de nós.

Folha - O que é o seu estilo?
Andahazi -
Acho que todo estilo é a dificuldade. Um romance é a materialização do fracasso de um projeto que não chegou a seu fim, que se converteu em outra coisa. Um escritor está mais vinculado a seu fracasso que ao êxito. Creio que é justamente por causa das falhas que se forja um estilo.

Folha - Como você relaciona o clássico de Maquiavel com a democracia na América Latina?
Andahazi -
Quando disse que um romance é a materialização de um fracasso, me refiro pontualmente ao seguinte: quando comecei a escrever "El Príncipe", eu queria reescrever a obra de Maquiavel aplicada a nossos países, circunstâncias e personagens.
Mas logo vi que Maquiavel era escasso para descrever nossa realidade. Temos personagens muito mais maquiavélicos que Maquiavel. A corrupção é intrínseca a nossas sociedades. É a licença que é dada pelo poder mundial a nossos governantes, em troca de permitirem a introdução intensiva e monopólica de suas mercadorias e a instalação de seu sistema perverso de comércio. O primeiro é chamado de "investimento" e o segundo, de "globalização". É difícil para um escritor competir com uma realidade tão literária.

Folha - Por que, em sua ficção, o império inca surge como o local de nascimento do demônio?
Andahazi -
Na mitologia andina pré-colombiana, o traidor tem lugar muito destacado. Esse monstro que se criou em "El Príncipe", que é uma espécie de Frankenstein, feito com pedaços de Menem, de Collor, de Fujimori, de Bucaram, de Salinas de Gortari etc., é a encarnação da traição.
O protagonista de "El Príncipe" é a síntese do pior das duas culturas: a pré-hispânica e a conquistadora. Nossas culturas surgem do melhor dessa síntese e nossos governantes reúnem o pior dela. Nossos países são filhos da traição, e não podemos nos desembaraçar disso. Há eleições, elegemos um presidente e imediatamente vemos como ele se transforma em uma outra coisa, no oposto.

Folha - O protagonista tem mortes trágicas na família e traços e costumes mouros. Ainda que seja uma mistura de várias figuras políticas, é inevitável pensar mais em Menem do que nos outros. Correto?
Andahazi -
Eu vivo na Argentina e sempre me pareceu que Menem era uma espécie de morto em vida. O menemismo significou a destruição absoluta do Estado argentino, uma tragédia da qual levaremos muito tempo para nos recuperar. No fim, parece que não há saída. E "El Príncipe" é uma tentativa de mostrar isso por meio da literatura.


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