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CONTARDO CALLIGARIS
Pacifistas e guerreadores
Segunda -feira dia 17, em
Nova York, neva sem parar: a
cidade está quase deserta. Nas
avenidas, circula, de vez em
quando, um esquiador.
Os nova-iorquinos, na semana
passada, fizeram estoque de
água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente
portas e janelas. Preparavam-se
para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos
e isolados, cada um em sua casa,
por uma embalagem de algodão.
Melhor assim, pois, nos bares e
ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do
momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na
belicosidade entusiasta. E eu não
me identifico com nenhuma das
duas posições. Aliás, suspeito que
elas tenham algo em comum.
À vista das faixas e dos cartazes,
os 250 mil manifestantes que, no
sábado passado, encheram as
ruas da cidade eram, em sua
maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora
mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que
parece decisivo: a vida é o valor
supremo, não arriscaremos nem
ameaçaremos vidas por conflito
nenhum. É simpático. Certo, leva
a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir
em Kosovo? E tivemos razão ao
não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.
Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um
apêndice da ética narcisista das
últimas décadas, segundo a qual
é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a
saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a
vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores
morais se situam acima de nosso
interesse e de nossa vontade de
sobreviver. Claro, ninguém é de
ferro: na Roma antiga, diante dos
leões do Coliseu, provavelmente
eu renegaria Deus e veneraria o
imperador. Mas admitiria que
não agi de maneira exemplar.
Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é
moralmente mais importante do
que professar minha fé.
No começo dos anos 80, a União
Soviética parecia ameaçar uma
espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio
alcance na Europa. Os governos
locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a
vida é mais importante que as
"baboseiras" políticas.
Alguns amigos tchecoslovacos,
exilados em Paris, contemplavam
as passeatas estupefatos. Teriam
preferido que os manifestantes
gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada".
Contra isso eles saberiam lutar;
afinal, já tinham lutado contra os
tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não
conseguiam entender estes filhos
do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam
suas vidas em perigo por nenhuma causa.
Ironicamente, os pacifistas, que
gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são
guiados pela moral do bem-estar
e da preservação da vida. Para
eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente,
quem não quer se sacrificar é
exemplo de imoralidade).
Opostos aos pacifistas radicais,
há os guerreadores, convencidos
de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros
cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo
surgirão parlamentos e partidos
políticos laicos. Essa mesma visão
animava os europeus na hora de
deixar suas colônias. Receavam
que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.
Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os
guerreadores, não há diferenças
culturais que possam resistir ao
poder e à sedução das luzes, as
quais, mesmo impostas com as
armas, conquistarão os espíritos
pelo mundo afora. E os pacifistas
acreditam que encontraram um
valor racionalmente universal
por ser biológico: a vida. Ao redor
disso, imaginam que produzirão
a unidade de todos. Para ambos,
em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a
paz futura entre os homens.
Os dois grupos alegam em seu
favor uma faculdade subjetiva: a
razão. Não estranha, portanto,
que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino
subjetivo. Para os guerreadores,
os pacifistas são apenas covardes.
Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja,
ninguém pode querer guerra para
promover um sistema de governo:
é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode
querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.
Resultado: nenhum diálogo,
apenas o clamor dos gritos, hoje
abrandado pela neve.
ccalligari@uol.com.br
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