São Paulo, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

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MEMÓRIA

Cineasta influenciou toda uma geração de documentaristas, com trabalhos etnológicos como "Moi, un Noir"

Morre Jean Rouch, pai do cinema-verdade

CRÍTICO DA FOLHA

Morreu ontem o cineasta francês Jean Rouch, um dos mais influentes documentaristas dos anos 50 e 60. Rouch morreu em um acidente de carro no Níger, aos 86 anos de idade, ainda em plena atividade cinematográfica. Era a referência primeira da era dos cinemas novos.
O bom documentário tende à ficção, a boa ficção tende ao documentário: o que Godard dizia do cinema de Rouch passou a valer para todo o cinema moderno do pós-Segunda Guerra, fundado sob uma relação mais dialética entre documentário e ficção.
Rouch fugiu do Ocidente para declarar "Moi, un Noir" ("Eu, um negro", 1958): grito que ecoa o lema rimbaudiano "Eu, um outro". O filme resulta do encontro entre um etnólogo branco que já não é mais o mesmo e imigrantes nigerianos em plena fabulação, personagens reais ficcionalizando a si próprios. Os personagens dão um passo rumo ao autor, dando-se o nome de heróis brancos, e o autor dá um passo rumo às personagens, restituindo-lhes a palavra; tudo o que Rouch prometera aos seus (não-)atores fora o "direito de tudo falar".
O cinema-verdade começava a se afirmar ali como língua (fílmica) falada. Surpreendendo-se com a autenticidade surgida dos momentos em que deixava seus personagens falarem livremente para a câmera, Rouch decidiu aprofundar seu método de fabulador. "Ao refletir sobre aquele êxito eu me disse que podíamos ir ainda mais longe na verdade, se ao invés de fazer atores interpretarem um papel, pedíssemos às pessoas que interpretassem seus próprios papéis."
Nesse gesto de ir ao encontro das pessoas e deixá-las fabularem por conta própria, Rouch transcendia a etnologia para ganhar o terreno da ficção, mas de uma ficção já inteiramente diversa daquela em que, volta e meia, os documentaristas clássicos recaíam. Por mais que tenham recusado a ficção, os documentaristas da era clássica, como Robert Flaherty, não conseguiram se afastar de um certo ideal de verdade indissociável da ficção. O cinema-verdade de Rouch só poderá se afirmar como "a verdade do cinema" (como queria o etnólogo) na medida em que tiver abolido, qualquer resquício desse antigo ideal de verdade do cinema clássico.
Se os documentários de Rouch tendiam à ficção, suas ficções (algumas das mais belas que o cinema moderno nos deu a ver, como o episódio de "Paris Visto Por...", chamado "Gare du Nord") tendiam ao documentário. Entre um e outro, Rouch pôde surpreender não a verdade, mas a metamorfose do verdadeiro. Sua obra, multiforme e corajosa, heteróclita e dialógica, permanecerá para sempre movente. (TMM)


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