São Paulo, sábado, 20 de fevereiro de 2010

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ANTONIO CICERO

Heidegger e o nazismo


É que, a despeito das afinidades políticas de Heidegger, sua obra não pode deixar de ser lida


LOGO QUE li, anos atrás, uma observação do filósofo Martin Heidegger segundo a qual o sentido da filosofia não era tornar as coisas mais fáceis, mas mais difíceis, não pude deixar de me lembrar do merecidamente famoso bordão de Chacrinha: "Eu não vim para explicar, mas para confundir".
Na verdade, é claro que "tornar as coisas mais difíceis" é muito diferente de confundi-las. A palavra alemã que traduzi por "mais difíceis", "schwerer", tem o sentido de "mais pesadas". Heidegger quer dizer que a filosofia reconhece o peso de cada coisa. Isso significa que ela as diferencia, que as torna mais complexas. De fato, o que a filosofia faz não é simplificar as coisas, mas complicá-las. Se entendermos "confundir" como fundir numa coisa só, então o sentido dessa palavra está mais próximo do de "simplificar" que do de "complicar", e é praticamente o oposto do sentido desta.
Enquanto simplificar um pensamento, por exemplo, é empobrecê-lo, complicar um pensamento é torná-lo ou revelá-lo como mais complexo, mais diferenciado, mais rico do que parecia ser. Tal é, de fato, um dos mais importantes benefícios que podemos auferir da filosofia.
É exatamente por isso que se pode ler com proveito um filósofo que pensa o oposto daquilo que pensamos, daquilo que pensamos pensar, ou daquilo que queremos inicialmente pensar. Mesmo que jamais concordemos, por exemplo, com as teses manifestamente defendidas pelo Sócrates de Platão em "A República", a leitura desse diálogo nos ensina a refletir e especular com maior profundidade e consistência.
Mas volto a Heidegger. Ninguém ignora que esse filósofo apoiou Hitler e o nazismo. Parece-me ademais inacreditável que alguém que tenha lido e compreendido a obra maior de Heidegger, "Ser e Tempo", de 1927, seja capaz de negar a impressionante afinidade entre o teor de certas pretensões desse livro e grande parte da ideologia nazista, que ele estranhamente antecipa. Basta lembrar que ambos rejeitam a modernidade filosófica, o iluminismo, o individualismo, o humanismo e o universalismo, enquanto exaltam o que consideram a autenticidade do indivíduo que se sacrifica em prol do destino particular da comunidade e do Estado a que pertence. A partir da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, Heidegger explicitamente articula seu pensamento com as concepções nazistas.
Essa articulação é o tema do livro extremamente informativo do filósofo francês Emmanuel Faye, "Heidegger: A Introdução do Nazismo na Filosofia", cuja recente tradução americana desencadeou uma intensa polêmica nos Estados Unidos. Por um lado, houve quem, como o professor de filosofia Carlin Romano, sugerisse banir os livros de Heidegger da academia; por outro lado, os discípulos do mestre da Floresta Negra tentaram, como aliás ocorrera à época da publicação do livro na França, desmoralizar Faye, de modo a desacreditar seu livro antes que ele pudesse ser seriamente discutido.
É inaceitável tanto a atitude dos primeiros quanto a dos segundos. Estes são desonestos não apenas porque todo encobrimento dessa natureza é desonesto, mas porque o que tentam encobrir é um comprometimento político que o próprio Heidegger, até o fim da vida, recusou-se a renegar. Ora, é importante -em primeiro lugar exatamente para quem se interessa pela filosofia de Heidegger- saber como ele mesmo entendia e vivia as consequências políticas do seu pensamento.
E que dizer da tentativa de excluir as obras de Heidegger das universidades? Não somente qualquer censura dessa natureza é inteiramente inadmissível numa sociedade aberta, como a verdade é que, a despeito das repugnantes afinidades políticas de Heidegger, sua obra não pode deixar de ser lida e discutida por quem quer que leve a sério o pensamento filosófico.
A filosofia de Heidegger é a culminação do pensamento antimoderno desenvolvido na Alemanha desde o romantismo, no início do século 19. São profundas suas intuições sobre os objetos do ataque que desfere, admiráveis suas interpretações e poderosos seus argumentos. Ninguém que hoje queira pensar seriamente sobre a modernidade, sobre a filosofia moderna ou sobre a filosofia "tout court" poderá ir muito longe, a menos que considere tais intuições, critique tais interpretações e enfrente tais argumentos que, como convém à filosofia, longe de simplificar, complicam as coisas. Que eles desemboquem na pior das ideologias totalitárias é mais uma razão para não os ignorar.


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