São Paulo, sexta, 20 de fevereiro de 1998

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Carnaval com muito espelho e pouca vergonha

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Remando sempre contra a maré -e sobretudo contra o calendário- quando o Carnaval se aproxima, entro em pânico individual. Tinha pavor das caveiras -e como havia caveira naquele tempo! Fantasia barata, constava de um lençol e da máscara que se comprava nas quitandas. Mais barata até do que a do morcego -uniforme para os meninos pobres que não podiam sair de mocinho ou legionário estrangeiro.
Bem verdade que também me botaram essas fantasias e em todas me senti desconfortável. Talvez me sentisse melhor de caveira mesmo, mas tinha medo de esbarrar num espelho. Para evitar outras fantasias, aos dez anos me enfiei numa batina e durante anos fiquei livre do problema.
Mas não fiquei livre dos espelhos. Quando saí do seminário, levava na carne a vontade de desforrar o tempo perdido. Já era adulto e ninguém me obrigaria a ser chinês ou legionário estrangeiro, muito menos marinheiro americano, fantasia que estava na moda, na base do "anchors away".
Daí que me esqueci dos espelhos. No primeiro Carnaval, fui com a roupa que usava todos os dias. Depois da batina, qualquer outra roupa já era uma fantasia. Arranjei uma namorada, na realidade arranjei duas. A primeira era colega da faculdade, filha de um engenheiro, o Carnaval dela era meio sem graça, num clube honesto da Tijuca.
A segunda era uma moça liberada para aquele tempo: morava com uma amiga em Copacabana, trabalhava numa loja de discos no largo da Carioca. Conheci-a quando fui comprar uns prelúdios de Debussy (gravação de Robert Cassadessus ao piano). Ela não sabia quem era Debussy, o gerente quase a demitiu, eu amenizei a procura e saí da loja levando meus primeiros discos de Gregorio Barrios, uns cinco de uma vez, fartei-me de ouvir "Una Mujer" -e foi ao som dessa música que começamos a relação.
Bem, veio o Carnaval e recebi convites para os bailes do High Life, que eram o vestibular do inferno, o triunfo da bandalheira, diziam que ali valia tudo e às vezes valia mesmo. Adoeci para não ter de ir ao baile comportado do Tijuca, vigiado pela família e pelos fiscais de salão. No High Life não havia nem famílias nem fiscais. Mas havia espelhos.
Não se podia dançar nem pular. A folia resumia-se num cordão único que dava voltas pelos salões. Era monótono, mas dava para aquilo que então se dizia "poucas-vergonhas". Agarrado na minha namorada -que veio com fantasia adrede, de grega falsificada, as coxas nuas, os seios mal tapados pela túnica- ,entrei no cordão ao som do sucesso do ano, "o general da banda que chegou/ catuca por baixo que ele cai"- a letra me parecia incompreensível, mas o ritmo era sensual, diabólico, mais tarde me informaram que servia de ponto nas macumbas.
Meia hora depois, eu estava calibrado, espremido pelos outros e espremendo minha grega que se deixava espremer e se não deixasse dava no mesmo, era o famoso, o condenável, o obsceno "vale tudo" do High Life.
O cordão quase não andava, todos se mexiam mais para os lados, em torno das parceiras. De maneira que eu estava gostando, gostando até demais, quando reparei num sujeito mal encarado que me observava. Estava à minha frente, ainda distante, volta e meia desaparecia no meio dos outros, mas sempre que aparecia me olhava fundamente, com reprovação e nojo.
Meia hora depois, eu continuava mais ou menos no mesmo lugar, com a grega untada de suor e eu cismado com aquele cara que não tirava os olhos de mim. O salão não era muito iluminado, comecei a desconfiar que conhecia aquele camarada que sumia no meio de outros foliões e quando reaparecia continuava a me olhar com severidade, me condenando.
Forcei a barra e tentei me aproximar dele. Estava ainda longe, e, curiosamente, notei que ele também procurava se aproximar. Aos poucos, fui reparando quão sórdida era sua face, seus olhos imundos, o suor repugnante que escorria de sua testa hedionda. Em todo o caso -e só percebi isso quando estava bem mais próximo- ele soubera se arranjar, à frente dele havia uma grega quase nua que se esfregava nele com fúria, uma grega igual à minha.
Olhei bem. Aquela cara idiota também me olhava. Olhava-me e me desafiava. Era para tomar satisfações. Avancei com resolução e fiquei diante de um espelho que ia do chão ao teto: eu estava diante de mim mesmo como nunca estivera antes e nunca estaria depois.
Meu Carnaval acabou ali. Não apenas o meu Carnaval, mas toda a alegria folgazã que nunca mais repeti. Tornei-me um homem de poucos risos. Volta e meia, o Marcelo Coelho reclama que sou rabugento. Sou mesmo e tenho motivos para o ser (ou sê-lo -o leitor escolha a forma que lhe convier).
Isso não quer dizer que resultei num homem sério, digno de confiança dos pais de família -isso existia naquele tempo. Substituí a grega por uma mineira, a mineira por uma paulista, a paulista por uma carioca -enfim, continuei no cordão, mas evitando os espelhos, como naqueles versos de Orestes Barbosa: "Para não ver nos espelhos meus olhos muito vermelhos de tanto, tanto chorar".



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