São Paulo, sexta, 20 de fevereiro de 1998

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Spielberg evangeliza em "Amistad"

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

"Amistad", o filme, trata de um acontecimento singular: em 1839, escravos levados a Cuba no navio negreiro "La Amistad" rebelam-se, tomam o barco e vão parar na costa nordeste dos EUA.
O aprisionamento do navio e de seus ocupantes -44 africanos e dois espanhóis, que se dizem seus proprietários- leva a um impasse político-jurídico.
Há quem queira, por diplomacia, devolver os negros à Espanha. Há quem os queira entregar aos pretensos proprietários.
E há, claro, os mocinhos da história, que querem libertá-los e mandá-los de volta à África. No filme, eles são o advogado branco Roger Baldwin (Matthew McConaughey) e o abolicionista negro Theodore Joadson (Morgan Freeman), aos quais vem juntar-se o ex-presidente John Quincy Adams (Anthony Hopkins).
Boa parte de "Amistad", portanto, consiste de um drama de tribunal. E não dos melhores.
É, talvez, o pior filme de Spielberg. Não tanto por ser superficial e sentimentalóide -tantos outros de sua grife o são-, mas por ter substituído o cinema pela retórica, não apenas verbal (um blablablá sem fim sobre liberdade e direitos humanos), mas também visual.
O que afunda "Amistad" com o peso de todos os chumbos é sua enferrujada linguagem audiovisual: uma profusão de imagens-feitas, clichês melodramáticos, direção burocrática e música redundante.
Nas primeiras conversas entre o advogado Baldwin e os abolicionistas Joadson e Tappan (Stellan Skargard), esboça-se um debate interessantíssimo, em torno do estatuto dos prisioneiros africanos.
Se eles tivessem nascido já no cativeiro, seriam considerados mercadorias, e seu caso seria da alçada do direito de propriedade. Mas nasceram livres na África, foram traficados ilegalmente em Serra Leoa (então possessão britânica), rebelaram-se, mataram gente.
Enfim, "o que" eram eles? Essa discussão permitiria iluminar aquele momento em que a balança da história pendia entre dois mundos: o da escravidão, moribunda, forte apenas no sul dos EUA e na América ibérica; e o do trabalho livre, emergente na Europa protestante e nos Estados do norte.
Um autor brechtiano se debruçaria sobre esse ponto de inflexão em que a "acumulação primitiva" de capital cumpriu seu ciclo e inicia-se a implantação plena do capitalismo, no qual o valor a ser trocado passa a ser a força de trabalho, não o trabalhador.
Mas Spielberg preferiu o caminho fácil do sentimentalismo e da condenação moral (como se houvesse ainda quem defendesse moralmente a escravidão).
Elegeu um herói negro -o líder da revolta, Cinque (Djimon Hounsou), símbolo da coragem e do desejo de liberdade dos africanos- e um herói branco, o veterano ex-presidente Adams, filho de um dos fundadores da nação americana e representante dos ideais democráticos que presidiram (dizem) sua independência.
Tudo é paternalismo e redundância nesse novelão, do previsível flash-back da vida idílica de Cinque na África à cena catártica em que, sob um horrendo coral de música religiosa, o líder negro clama por liberdade no tribunal.
A passagem mais absurda -aquela em que um africano se converte ao cristianismo ao ver as figuras da Bíblia- é também a mais reveladora. Com suas imagens singelas, Spielberg quer pregar seu evangelho às almas simples. Só que esse sermão todo mundo já conhece.

Filme: Amistad Produção: EUA, 1997 Direção: Steven Spielberg Com: Anthony Hopkins, Morgan Freeman Quando: a partir de hoje, nos cines Bristol, Center Norte 3 e circuito Na Internet: http://www.amistad-thefilm.com/


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