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Spielberg evangeliza em "Amistad"
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
"Amistad", o filme, trata de um
acontecimento singular: em 1839,
escravos levados a Cuba no navio
negreiro "La Amistad" rebelam-se, tomam o barco e vão parar
na costa nordeste dos EUA.
O aprisionamento do navio e de
seus ocupantes -44 africanos e
dois espanhóis, que se dizem seus
proprietários- leva a um impasse
político-jurídico.
Há quem queira, por diplomacia, devolver os negros à Espanha.
Há quem os queira entregar aos
pretensos proprietários.
E há, claro, os mocinhos da história, que querem libertá-los e
mandá-los de volta à África. No
filme, eles são o advogado branco
Roger Baldwin (Matthew McConaughey) e o abolicionista negro
Theodore Joadson (Morgan Freeman), aos quais vem juntar-se o
ex-presidente John Quincy Adams
(Anthony Hopkins).
Boa parte de "Amistad", portanto, consiste de um drama de tribunal. E não dos melhores.
É, talvez, o pior filme de Spielberg. Não tanto por ser superficial
e sentimentalóide -tantos outros
de sua grife o são-, mas por ter
substituído o cinema pela retórica,
não apenas verbal (um blablablá
sem fim sobre liberdade e direitos
humanos), mas também visual.
O que afunda "Amistad" com o
peso de todos os chumbos é sua
enferrujada linguagem audiovisual: uma profusão de imagens-feitas, clichês melodramáticos, direção burocrática e música
redundante.
Nas primeiras conversas entre o
advogado Baldwin e os abolicionistas Joadson e Tappan (Stellan
Skargard), esboça-se um debate
interessantíssimo, em torno do estatuto dos prisioneiros africanos.
Se eles tivessem nascido já no cativeiro, seriam considerados mercadorias, e seu caso seria da alçada
do direito de propriedade. Mas
nasceram livres na África, foram
traficados ilegalmente em Serra
Leoa (então possessão britânica),
rebelaram-se, mataram gente.
Enfim, "o que" eram eles? Essa
discussão permitiria iluminar
aquele momento em que a balança
da história pendia entre dois mundos: o da escravidão, moribunda,
forte apenas no sul dos EUA e na
América ibérica; e o do trabalho
livre, emergente na Europa protestante e nos Estados do norte.
Um autor brechtiano se debruçaria sobre esse ponto de inflexão
em que a "acumulação primitiva"
de capital cumpriu seu ciclo e inicia-se a implantação plena do capitalismo, no qual o valor a ser
trocado passa a ser a força de trabalho, não o trabalhador.
Mas Spielberg preferiu o caminho fácil do sentimentalismo e da
condenação moral (como se houvesse ainda quem defendesse moralmente a escravidão).
Elegeu um herói negro -o líder
da revolta, Cinque (Djimon
Hounsou), símbolo da coragem e
do desejo de liberdade dos africanos- e um herói branco, o veterano ex-presidente Adams, filho
de um dos fundadores da nação
americana e representante dos
ideais democráticos que presidiram (dizem) sua independência.
Tudo é paternalismo e redundância nesse novelão, do previsível flash-back da vida idílica de
Cinque na África à cena catártica
em que, sob um horrendo coral de
música religiosa, o líder negro clama por liberdade no tribunal.
A passagem mais absurda
-aquela em que um africano se
converte ao cristianismo ao ver as
figuras da Bíblia- é também a
mais reveladora. Com suas imagens singelas, Spielberg quer pregar seu evangelho às almas simples. Só que esse sermão todo
mundo já conhece.
Filme: Amistad
Produção: EUA, 1997
Direção: Steven Spielberg
Com: Anthony Hopkins, Morgan Freeman
Quando: a partir de hoje, nos cines Bristol,
Center Norte 3 e circuito
Na Internet: http://www.amistad-thefilm.com/
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