São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
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Para que uma biografia como a de Steinbeck?

Reprodução
O escritor norte-americano John Steinbeck, tema de biografia de Jay Parini que a Record lança no Brasil


BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Biografias do tipo da que o americano Jay Parini escreveu sobre John Steinbeck (o celebrado autor de "Ratos e Homens", "As Vinhas da Ira" e "Vidas Amargas") servem para lançar uma pergunta geral e básica sobre um gênero recentemente tão disseminado no mercado editorial: para que, afinal, uma biografia?
Um dos pré-requisitos para quem deseja se aventurar numa empreitada desse tipo de leitura (em "John Steinbeck: Uma Biografia", são 585 páginas para cobrir os 66 anos da vida do escritor) é ter o biografado na mais alta estima, idolatrá-lo ao ponto de poder não só engolir, mas se regalar com qualquer detalhe da reconstituição do seu dia-a-dia, por menos excitante e significativo que tenha sido, e a despeito do estilo do biógrafo, por vezes o mais florido.
Vale conferir algumas passagens interessantíssimas, ao acaso: "Para John e Carol e seus amigos, a vida era gostosa na zona residencial sudoeste de Los Angeles" ou "Após um emocionado desjejum de despedida com os Sheffield, que incluiu "panquecas, uma fatia de bacon, café preto e cerveja", partiram para o norte" ou "Ele terminou o manuscrito de "The Pastures of Heaven" (...). Comemorou com Carol tomando uma garrafa de "vinho francês autêntico", um luxo na Califórnia, que tinha tanto de seu próprio vinho mais barato".
Mas também há pérolas na categoria estilo e perspicácia: "De uma maneira estranha, a situação marital deles refletia a do país em geral: nuvens de tempestade acumulavam-se no horizonte, mas por enquanto a luz do sol abria um túnel por uma estreita fenda logo acima" ou "O Natal é uma época sabidamente difícil para as famílias, sobretudo as que estão com problemas" ou "A descida para a morte começa no nascimento, mas para John Steinbeck a ladeira abaixo se tornou muito mais inclinada em seu retorno a Nova York" ou "Restavam, infelizmente, poucos peixes para reunir na rede de sua prosa" ou "A morte de Steinbeck deixou-o, ou a sua reputação, nas mãos trêmulas da eternidade".
É uma tentação -e seria sem dúvida um prazer- continuar citando "ad infinitum", pena que não haja espaço num artigo de jornal para tantos excertos, e todos tão cheios de revelações e curiosidades.
Algum espírito de porco poderia retrucar que a vida é assim mesmo, recheada de banalidades. Muito bem, mas então qual a necessidade de um livro de mais de 500 páginas quando todas as informações significativas (nasceu em 1902, morreu em 1968, trabalhou em Hollywood, foi correspondente de guerra do "Herald Tribune", ganhou o prêmio Nobel em 1962) poderiam muito bem caber num verbete de enciclopédia? E como justificar o estilo?
Jay Parini, o biógrafo, explica que seu objetivo ao escrever o livro "foi invocar o espírito honesto de John Steinbeck incorporado no homem e em seus livros". Na verdade, esse objetivo se desdobra eventualmente num procedimento de origem moral e psicologizante típico das biografias: emitir juízos de valor que dêem conta da obra com base na vida do autor.
Parini não só reduz várias passagens da obra à relação problemática do autor com o pai e com as mulheres, mas vai mais longe, pontuando essas explicações psicológicas com suas próprias opiniões: "Na verdade, Steinbeck merece uma censura severa pelo tratamento dado a Carol (a primeira mulher), que beira a mais grossa desumanidade". É de lascar.
Para completar, quando a situação de fato pede algum tipo de esclarecimento, o biógrafo se omite. O filho caçula de Steinbeck, John 4º, por exemplo, depois de passar pela Guerra do Vietnã, vai trabalhar no Pentágono e fica viciado em drogas, morrendo "com 40 e poucos anos, um tanto tragicamente, sem jamais se aprumar", segundo a madrasta, Elaine, terceira mulher do escritor.
Parini se contenta com a declaração sucinta e nebulosa da viúva, aliás a principal fonte de sua pesquisa, sem revelar nada sobre esse caso.
Tentando justificar "a arte da biografia", o biógrafo toma emprestada uma frase de uma carta de Steinbeck de 1957: "Pode-se dizer que um romance é o homem que o escreve", para concluir que a obra, estando cheia de "elementos autobiográficos", pede uma biografia do autor. O que Parini não quer ver é que, se o romance já é o homem, como diz Steinbeck, então o melhor para quem quer conhecê-lo é ler a própria obra.
É o caminho que Parini faz em "A Travessia de Benjamin", romance de sua autoria baseado nos últimos anos do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940). Ao contrário da biografia, aqui o autor imagina a vida do escritor a partir da obra (o livro é pontuado de citações) para recriar a história como ficção, desta vez assumida.

A travessia
A vantagem de uma ficção sobre Benjamin em relação a uma biografia de Steinbeck é que o suicídio do primeiro, ao atravessar a fronteira da França com a Espanha pelos Pirineus, em sua fuga dos nazistas, é realmente uma das situações mais dramáticas e patéticas da história intelectual do século 20. Parini se serve da riqueza dramática dessa tragédia para construir um romance de admiração até simpático -"uma visão singela", como diz Harold Bloom na contracapa da edição brasileira- num esforço de índole didática.
Ao recriar situações, por vezes íntimas, e diálogos entre Benjamin e seus contemporâneos (Bertolt Brecht, Hannah Arendt etc.), o autor parece estar imbuído de um projeto educacional: dar ao público americano, sob a forma "mais fácil e deglutível" da ficção, nem que seja apenas um vislumbre dessa cultura européia que tanto admira.
Em ambos os casos, no entanto, cabe perguntar por que esse tipo de livros (as biografias e as ficções sobre personagens históricos) serve à mídia -e, por consequência, ao mercado.
E a resposta é simples: porque os jornalistas podem reproduzir as "revelações" sobre essas vidas como se fossem fatos jornalísticos, informações em primeira mão ao leitor, em resenhas que são na verdade paráfrases.
Nesse círculo vicioso, todos saem ganhando -autor, editor e jornalista. A única dúvida é quanto ao leitor, que acredita estar lendo "uma história real" e mais interessante do que a sua, e se sente, por razões de psicologia social que seriam demasiado extensas para um artigo de jornal, de algum jeito reconfortado num mundo cada vez mais virtual, em que a realidade -e, por tabela, a sua própria vida- parece cada vez menos palpável.

Livro: John Steinbeck
Autor: Jay Parini
Tradução: Alda Porto e Marcos Santarrita
Lançamento: Record
Preço: R$ 48,00 (585 págs.)


Livro: A Travessia de Benjamin
Autor: Jay Parini
Tradução: Maria Alice Máximo
Lançamento: Record
Preço: R$ 34,00 (412 págs.)



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