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NELSON ASCHER
Crítica (não só) literária
Já caminharam sobre a Terra,
gravando caracteres em algum tipo de material, pelo menos
150 gerações de escritores. Dizem
que tudo começou 5.000 ou 6.000
anos atrás no sul do Iraque atual,
a antiga terra dos sumérios. Foi lá
que se teria inventado pela primeira vez um modo de, às emissões sonoras chamadas de linguagem verbal, fazer corresponder sinais visíveis, transmissíveis sem o
auxílio de memórias individuais
e, conseqüentemente, duráveis.
Os mortos se tornaram, desde
então, capazes de falar com os vivos. "Escucho com mis ojos a los
muertos", constatou o poeta espanhol Quevedo. E, com o passar do
tempo, multiplica-se o total de
mortos falantes (Quevedo entre
eles) que competem com os vivos
que, por seu turno, competem entre si pela atenção de um número
limitado de olhos ouvintes.
Por isso existe a crítica literária:
porque nem mesmo a vida de um
leitor voraz, dedicado e longevo
bastaria para dar conta sequer
dos romances publicados ano
passado no mundo. Talvez uma
existência inteira não seja mesmo
suficiente para ler quanto há para ser lido em, digamos, "A Montanha Mágica". E, no entanto, o
desejo de ler tudo é, para os verdadeiros leitores, tão natural como o da imortalidade para quem,
após compreender os tempos verbais, não ignore mais a ameaça
presente no futuro da primeira
pessoa do singular.
A crítica literária existe, sobretudo, para triar obras recentes,
apontando quais merecem atenção, e para retriar, a cada geração, aquelas previamente avaliadas, de modo a questionar juízos
passados. Chamar a atenção para
certa obra, uma atividade generosa, envolve a crueldade necessária de pôr outras de lado. A vida é curta, a paciência dos leitores, mais ainda -e "triagem" é
um galicismo de origem sinistra.
Durante a Primeira Guerra, a escala industrial da sangueira (decorrente da fartura combinada
de soldados e metralhadoras) sobrecarregou os serviços médicos
nas frentes de batalha. O Exército
francês se viu então forçado a
"triar", ou seja, repartir seus feridos em três categorias: os que podiam ser medicados no local, os
que valia a pena levar aos hospitais na retaguarda e os que estariam tirando o lugar de gente
com chances melhores. Estes
eram entregues aos sedativos e sacerdotes.
Se a atividade crítica parece impiedosa, talvez seja o caso de lembrar que, diferentemente dos seres humanos, obras literárias não
têm direito automático nem sequer à vida (ao de serem lidas).
Nenhum livro é obrigatório, exceto para estudantes, professores e
críticos profissionais que, geralmente, são os que não os lêem. O
público não tem deveres para
com escritores vivos, mortos ou
mortos-vivos e, quando lê, está
lhes fazendo um favor, uma gentileza. É aos autores que cabe estar à altura de tal deferência, pois
toda obra é culpada até prova em
contrário. O crítico, assim, também pode ser considerado seu advogado. Mesmo que esteja disposto a mentir ou trapacear, o processo é tão aberto que alguma
verdade acaba se estabelecendo.
Daí a dificuldade, em qualquer
arte, de alterar os cânones vigentes e colocar, por exemplo, Salieri
no lugar de Mozart.
Um advogado é tanto melhor
quanto mais a fundo conhecer
seu caso, e, como a literatura diz
respeito a tudo, não resta ao crítico outra opção que a de buscar se
familiarizar com tudo, algo impossível. Bom, existe outra opção,
que esteve em moda por anos e
anos. Trata-se, no sentido tacanho do termo, da abordagem estritamente "literária" para a qual
um poema, um conto, um romance se reduzem a um amontoado
organizado de palavras. Discorrer sobre "Guerra e Paz" ou "A
Cartuxa de Parma" ignorando os
detalhes das guerras napoleônicas e os tipos de armamentos à
disposição dos contendores, examinar "Os Lusíadas" sem pensar
na expansão do império português ou na arte da navegação ou
analisar "Ulisses" sem refletir sobre as relações entre Irlanda e Inglaterra equivalem a perder de
vista muito da razão de ser desses
livros -se bem que julgá-los somente através de um desses prismas tampouco seja inteligente.
Em outras palavras, quem escrevesse algo intitulado "Auschwitz: Uma Abordagem Contábil"
e concluísse que o comandante
Rudolf Höss era inocente, pois administrou direito seu campo, ou
(o que dá na mesma) culpado,
porque revendeu, sem registrar a
transação, várias latas de Zyklon
B a seu colega Franz Stangl, de
Treblinka, quem chegasse a tais
conclusões sem se perguntar para
que serviam as latas seria antes
parte do problema do que da solução. Mas quem quer que ostente indignação moral sem dominar os dados e fatos relevantes
nada acrescenta à discussão, pois,
caso queira que seus sentimentos
prevaleçam, convém-lhe saber tudo o que o contador acima sabe e
mais.
O interesse pela literatura ou é
onívoro ou não é. O leitor autêntico deseja saber de tudo, truísmo
que se aplica dupla ou triplamente aos críticos de verdade. Autores
de best-sellers, atentos à curiosidade da audiência, estão cientes
disso e, coerentemente, recheiam
seus calhamaços com informações variadas sobre como se desmonta uma bomba, o que é que
socialites comem, bebem ou cheiram, como se pilota um Spitfire,
quais as posições sexuais favoritas de um samurai do século 16.
Quando Mallarmé observou
que o mundo existe para acabar
num livro, ele não estava aviltando o primeiro, mas, sim, afirmando quão abrangente e ambicioso
era seu programa para o segundo.
Seu discípulo, Paul Valéry, disse
que um homem que nunca quis
ser um deus é menos do que um
homem. Um crítico que seja apenas literário é, portanto, menos
do que um crítico literário. E não
há meio termo.
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