São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2006

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NELSON ASCHER

Crítica (não só) literária

Já caminharam sobre a Terra, gravando caracteres em algum tipo de material, pelo menos 150 gerações de escritores. Dizem que tudo começou 5.000 ou 6.000 anos atrás no sul do Iraque atual, a antiga terra dos sumérios. Foi lá que se teria inventado pela primeira vez um modo de, às emissões sonoras chamadas de linguagem verbal, fazer corresponder sinais visíveis, transmissíveis sem o auxílio de memórias individuais e, conseqüentemente, duráveis.
Os mortos se tornaram, desde então, capazes de falar com os vivos. "Escucho com mis ojos a los muertos", constatou o poeta espanhol Quevedo. E, com o passar do tempo, multiplica-se o total de mortos falantes (Quevedo entre eles) que competem com os vivos que, por seu turno, competem entre si pela atenção de um número limitado de olhos ouvintes.
Por isso existe a crítica literária: porque nem mesmo a vida de um leitor voraz, dedicado e longevo bastaria para dar conta sequer dos romances publicados ano passado no mundo. Talvez uma existência inteira não seja mesmo suficiente para ler quanto há para ser lido em, digamos, "A Montanha Mágica". E, no entanto, o desejo de ler tudo é, para os verdadeiros leitores, tão natural como o da imortalidade para quem, após compreender os tempos verbais, não ignore mais a ameaça presente no futuro da primeira pessoa do singular.
A crítica literária existe, sobretudo, para triar obras recentes, apontando quais merecem atenção, e para retriar, a cada geração, aquelas previamente avaliadas, de modo a questionar juízos passados. Chamar a atenção para certa obra, uma atividade generosa, envolve a crueldade necessária de pôr outras de lado. A vida é curta, a paciência dos leitores, mais ainda -e "triagem" é um galicismo de origem sinistra. Durante a Primeira Guerra, a escala industrial da sangueira (decorrente da fartura combinada de soldados e metralhadoras) sobrecarregou os serviços médicos nas frentes de batalha. O Exército francês se viu então forçado a "triar", ou seja, repartir seus feridos em três categorias: os que podiam ser medicados no local, os que valia a pena levar aos hospitais na retaguarda e os que estariam tirando o lugar de gente com chances melhores. Estes eram entregues aos sedativos e sacerdotes.
Se a atividade crítica parece impiedosa, talvez seja o caso de lembrar que, diferentemente dos seres humanos, obras literárias não têm direito automático nem sequer à vida (ao de serem lidas). Nenhum livro é obrigatório, exceto para estudantes, professores e críticos profissionais que, geralmente, são os que não os lêem. O público não tem deveres para com escritores vivos, mortos ou mortos-vivos e, quando lê, está lhes fazendo um favor, uma gentileza. É aos autores que cabe estar à altura de tal deferência, pois toda obra é culpada até prova em contrário. O crítico, assim, também pode ser considerado seu advogado. Mesmo que esteja disposto a mentir ou trapacear, o processo é tão aberto que alguma verdade acaba se estabelecendo. Daí a dificuldade, em qualquer arte, de alterar os cânones vigentes e colocar, por exemplo, Salieri no lugar de Mozart.
Um advogado é tanto melhor quanto mais a fundo conhecer seu caso, e, como a literatura diz respeito a tudo, não resta ao crítico outra opção que a de buscar se familiarizar com tudo, algo impossível. Bom, existe outra opção, que esteve em moda por anos e anos. Trata-se, no sentido tacanho do termo, da abordagem estritamente "literária" para a qual um poema, um conto, um romance se reduzem a um amontoado organizado de palavras. Discorrer sobre "Guerra e Paz" ou "A Cartuxa de Parma" ignorando os detalhes das guerras napoleônicas e os tipos de armamentos à disposição dos contendores, examinar "Os Lusíadas" sem pensar na expansão do império português ou na arte da navegação ou analisar "Ulisses" sem refletir sobre as relações entre Irlanda e Inglaterra equivalem a perder de vista muito da razão de ser desses livros -se bem que julgá-los somente através de um desses prismas tampouco seja inteligente.
Em outras palavras, quem escrevesse algo intitulado "Auschwitz: Uma Abordagem Contábil" e concluísse que o comandante Rudolf Höss era inocente, pois administrou direito seu campo, ou (o que dá na mesma) culpado, porque revendeu, sem registrar a transação, várias latas de Zyklon B a seu colega Franz Stangl, de Treblinka, quem chegasse a tais conclusões sem se perguntar para que serviam as latas seria antes parte do problema do que da solução. Mas quem quer que ostente indignação moral sem dominar os dados e fatos relevantes nada acrescenta à discussão, pois, caso queira que seus sentimentos prevaleçam, convém-lhe saber tudo o que o contador acima sabe e mais.
O interesse pela literatura ou é onívoro ou não é. O leitor autêntico deseja saber de tudo, truísmo que se aplica dupla ou triplamente aos críticos de verdade. Autores de best-sellers, atentos à curiosidade da audiência, estão cientes disso e, coerentemente, recheiam seus calhamaços com informações variadas sobre como se desmonta uma bomba, o que é que socialites comem, bebem ou cheiram, como se pilota um Spitfire, quais as posições sexuais favoritas de um samurai do século 16.
Quando Mallarmé observou que o mundo existe para acabar num livro, ele não estava aviltando o primeiro, mas, sim, afirmando quão abrangente e ambicioso era seu programa para o segundo. Seu discípulo, Paul Valéry, disse que um homem que nunca quis ser um deus é menos do que um homem. Um crítico que seja apenas literário é, portanto, menos do que um crítico literário. E não há meio termo.


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