São Paulo, sábado, 20 de março de 2010

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LIVROS

Crítica/ "O Caminho Para Wigan Pier"

Orwell faz duro retrato da pobreza

Livro é resultado do convívio de 2 meses do autor com os trabalhadores de mineração do norte da Inglaterra, em 1936

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Raymond Raymond Williams foi quem melhor entendeu George Orwell. Para ele, a literatura e as ideias de Orwell tinham o profundo valor da sinceridade e abrigavam uma incontável série de paradoxos.
Em "O Caminho Para Wigan Pier", espécie singular de reportagem realista e manifesto político, encontramos ambas as coisas. Dividido em duas partes, começa por descrever, de maneira direta e virulenta, as condições de vida miseráveis dos trabalhadores do norte da Inglaterra à beira da Segunda Guerra. Aqui, toda a força do estilo sincero e materialista do autor aparece, remetendo a uma tradição que vai de Engels e Zola a Dickens.
Ao mesmo tempo, sua peregrinação ao horror dos que vivem sob o capital vai se entrecortando por reflexões sobre sua vida, o imperialismo britânico, o pesadelo de sua época de aluno em escola de elite.
Na segunda parte, a elite inglesa e a classe média que lhe é a pálida imagem são os alvos principais, incluindo ai socialistas, liberais e comunistas.
É tão duro o ataque à classe média quanto as ridicularizantes caricaturas dos "socialistas". Mas estas só se entendem pela crítica direta à elite e aos que escolhem aderir a seu universo opressivo ao invés de se identificar com os desvalidos.
Os orwellianos de direita tendem a destacar essas furiosas caricaturas dos socialistas moderados e generalizá-las como retratos fidedignos de toda a "esquerda", coisa que Orwell não autoriza. Aliás, a mesma operação é feita quando se lê "A Revolução dos Bichos" apenas como um retrato do stalinismo, o que ele também é, ou, superficialmente (e com ar de magnânima inteligência postada, coisa que Orwell despreza), como uma imagem de "todas as formas do totalitarismo", esquecendo de adicionar a ditadura do capitalismo (do dinheiro como valor absoluto e da "naturalidade" da condição de riqueza para uns e de miséria para a maioria), que é o objeto de análise e denúncia de "O Caminho Para Wigan Pier".
A critica de Orwell se dirige aos socialistas moderados, os intelectuais de tapinhas nas costas da elite, que faziam o socialismo emperrar.
Para ele, a "moda" da época (como na nossa época, aliás) de dizer que as divisões de classe estavam desaparecendo era um infâmia, e é sobretudo contra isso que ele despeja seu palavrório caudaloso.
Orwell tinha ojeriza tanto dos comunistas sovietistas quanto dos socialistas moderados, os "responsáveis" articuladores de consensos e comedimentos.
Para ele, que se colocou à esquerda do Partido Trabalhista, o stalinismo já era autoritarismo, e os moderados não poderiam construir uma alternativa.
E pior: ambos abriam as portas para o fascismo.

Convite à reflexão
""O Caminho Para Wigan Pier" traz belas e terríveis fotos da edição original, uma boa introdução de Richard Hoggart e um ótimo posfácio do jornalista Mario Sergio Conti.
O leitor é convidado a refletir sobre como o mundo grotesco da miséria e do conformismo da Inglaterra de ontem persiste inteiro no Brasil de hoje.


FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea da USP.

O CAMINHO PARA WIGAN PIER
Autor:
George Orwell
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Isa Mara Lando
Quanto: R$ 46 (272 págs.)
Avaliação: ótimo



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