São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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CRÍTICA
Ibsen proclama o poder do homem só

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

A última frase do médico Thomas Stockmann, em "O Inimigo do Povo", ecoa nos ouvidos, na saída do teatro, com um poder incontrolável. "O homem mais forte é o que está mais só."
Não é a política, o conflito com a maioria, "a unanimidade burra", menos ainda o domínio da razão, da verdade científica a enfrentar o fanatismo grupal, todas mensagens também flanqueadas pela peça, o que faz de "O Inimigo do Povo" um texto tão potente no novo final de século.
É a sedução do homem só, não mais refém de idéias, verdades, amigos ou grupos. É a imagem de, quanto mais despojado, isolado, maior o domínio do homem sobre a própria existência.
Em tempo de exclusão crescente, ou de temor dela, o impacto da afirmação da ação individual, quanto mais despojada melhor, é tão inebriante que chega a soar como um canto de sereia, falso, enganador.
Ele chama a erguer uma moral individual, até um orgulho próprio, diante do qual tudo é pequeno, tudo cai. As pedras que atiram contra a família do doutor Stockmann se tornam "cascalho".
O enredo: Stockmann descobriu os poderes curativos das águas de uma cidade e, com isso, trouxe prosperidade. Mas ele descobre, quando a peça começa, que as águas se contaminaram. Busca convencer seus concidadãos, mas pouco a pouco eles se deixam fechar os ouvidos contra o médico.
Ele termina acusado de "inimigo do povo", perseguido pelas ruas com a mulher e a filha. Pensa em fugir, mas acorda afinal para o que proclama, inabalável, na última frase da adaptação.
Antes, faz um dos discursos mais furiosos da literatura contra "a maioria", vale dizer, a democracia. Nele diz: "A única verdade que interessa é a que foi descoberta dentro de cada um, a única revolução consequente é a do espírito."
No final, porém, quando afirma o poder do homem só, ele vislumbra a intervenção do homem na sociedade. Ele decide erguer uma escola.
O texto de Ibsen, escrito há mais de um século, adaptado e muito cortado pelo diretor Domingos de Oliveira, também dramaturgo, é de longe a maior atração do espetáculo.
De resto, trata-se de uma montagem tradicional ao extremo da paciência. Há como que uma opção por nada acrescer que venha a provocar ruído e prejudicar a transmissão do texto -embora tão cortado.
Para uma peça que proclama a individualidade, uma encenação que a suprime, como se estivessem todos contidos por algum freio. Ou, pior, como se estivessem todos a espelhar, na peça, uma verdade absoluta -o que nem o próprio médico, o idealista "confuso" Stockmann, indica ser possível.
Como escreveu um ensaísta brasileiro, sobre o Ibsen de "O Inimigo do Povo": "Ibsen é dramaturgo: vê o direito de ambos os lados. E é cético: já não acreditava na verdade absoluta."
Muito do freio maniqueísta se deve aos cortes, mas também à atuação uniforme, sem nuances, do protagonista Paulo Betti. Stockmann tem escorregadelas de caráter, pequenas covardias e grandes injustiças, que tornariam o personagem ainda mais avassalador ao final, se melhor aproveitadas.
Também o irmão do médico, que é seu maior opositor e o prefeito da cidade, Peter Stockmann, pedia um desenho menos vilanesco de Antonio Grassi e da adaptação. Ele tem todas as razões do mundo para agir como age -ele, afinal, é a maioria.
Tanto o prefeito quanto o jornalista de Giuseppe Oristanio perdem com sua definição por traços superficiais, este último saltando de aliado a malvado sem que se acompanhe bem por quê. A democracia não tem maior direito de defesa, na montagem.


Peça: O Inimigo do Povo
Autor: Henrik Ibsen (1828-1906)
Quando: sex e sáb, às 21h; dom, às 18h
Onde: Teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, tel. 011/288-0136)
Quanto: R$ 15



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