São Paulo, Sábado, 20 de Março de 1999
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LITERATURA
Poeta concretista recebe, na quarta, o prêmio Octavio Paz no valor de US$ 100 mil na cidade do México
Com prêmio, Haroldo de Campos volta à Web

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Haroldo de Campos recebe, na quarta-feira, na cidade do México, do presidente Ernesto Zedillo, o prêmio Octavio Paz, de poesia e ensaio. O prêmio, promovido pela Fundação Octavio Paz, uma entidade privada, é de US$ 100 mil.
"Vou poder voltar a comprar livros na Internet! Fiquei viciado. E agora eu nem estava entrando mais, para evitar a tentação", diz o poeta e ensaísta, rindo.
É a segunda vez que o prêmio é outorgado. O poeta chileno Gonzalo Rojas foi o primeiro a recebê-lo. Campos faz 70 anos neste ano. O prêmio é o reconhecimento de quase 50 anos de sua obra de poeta, ensaísta e tradutor.
Além do discurso em espanhol e da leitura de poemas de seu último livro, "Crisantempo" (editora Perspectiva, 1998), o poeta dará uma aula magna na Universidade Autônoma do México, sobre "literatura universal e as chamadas literaturas terceiro-mundistas".
Entre os projetos em preparação estão a tradução da "Ilíada" (Campos está no 15º canto), o lançamento de uma nova coletânea de poemas, a publicação da tradução completa do "Cântico dos Cânticos" e um ensaio sobre o barroco. A tradução comentada do 2º canto da "Ilíada", numa edição conjunta com Trajano Vieira, deve sair em abril pela Sette Letras, com o título "Os Nomes e os Navios".

Folha - Existe alguma coisa hoje em poesia ou nas artes que provoque no senhor o mesmo efeito da descoberta de Ezra Pound, John Cage, e.e.cummings?
Haroldo de Campos -
A poesia universal passa por um momento que não oferece personalidades da força do Pound, de um Ponge, de um João Cabral. Na Alemanha de hoje, por exemplo, um dos melhores é o Hans Magnus Enzensberger, um poeta de linhagem brechtiana. Mas entre ele e o Paul Celan ainda prefiro o Celan. Nada nos Estados Unidos substitui William Carlos Williams, Pound, Elliot, Wallace Stevens.
Às vezes, surge uma geração tão forte que é muito difícil encontrar depois um poeta à altura. É o caso de Portugal com a geração de Fernando Pessoa e Mario Sá Carneiro. Na Itália, há o Edoardo Sanguineti. Mas houve uma época em que a gente tinha certezas. Nunca tive dúvidas de que o maior poeta italiano era o Ungaretti. Hoje não dá para afirmar nada com tanta certeza.
Folha - Em "Crisantempo" há um poema dedicado ao pintor Marco Giannotti, um outro escrito à maneira dos Titãs. O que o sr. vê nessa produção cultural jovem?
Campos -
Na chamada fase heróica da poesia concreta, nos anos 60, uma das bases do nosso trabalho era tirar a poesia do gueto das belas-letras e mostrar que ela é uma arte em relação com a música, com a pintura, com a arquitetura, com problemas de linguagem, filosóficos. Isso nos ligou desde cedo a músicos e pintores. Eu era muito amigo da Mira Schendel.
Entre os jovens, ela gostava do Giannotti e do Nuno Ramos. Passei a acompanhar as exposições deles. Sempre fui próximo de músicos, do Arrigo, do Tom Zé, do Walter Franco. Gosto muito do Arnaldo Antunes e do trabalho dele de poeta. Uma vez cheguei a ir de ônibus com os Titãs a um show em Taubaté.
Folha - Nesse livro também há um poema sobre o Botero. O sr. é tão rigoroso nas suas escolhas literárias (Cummings, Pound, Joyce) e de repente aparece com o Botero?
Campos -
Ele conseguiu iconizar o que há de lamentável nas Américas, o ditador, a igreja reacionária, e fez isso com uma linguagem figurada, a obesidade, a desproporção das formas, que é uma crítica feroz àqueles estados sociais de onde vem a opressão. Guardadas as proporções, ele tem uma visão goyesca da realidade. Ele faz com a América Latina um pouco o que o George Grosz fez na Alemanha do expressionismo.
Folha - É curioso que, no poema "Meninos Eu Vi", o sr. insinue que a poesia não é para jovens. Por quê?
Campos -
Uma poesia como a que eu faço realmente não é muito para jovens, porque é uma poesia de alguém que passou por muitas coisas e entrou numa fase mais filosófica. Nunca entendi por que o Oswald de Andrade no final da vida acabou com aquela paixão pela filosofia. É uma paixão da idade.
Você chega a uma fase reflexiva. Hoje, uma das minhas leituras preferidas é filosofia. Há a marca dessas leituras na minha poesia. Há um traço benjaminiano em "O Anjo Esquerdo da História", por exemplo, que está em "Crisantempo". Mas como é que você vai julgar um fenômeno como o Rimbaud, que começou a escrever com 15 anos? Ele quebra qualquer tipo de classificação. É uma mariposa que se combusta no fogo.
Folha - Também nesse livro há poemas políticos, engajados, como o dos sem-terra. Houve outros, sobre o Lula e o PT, por exemplo, que o sr. publicou na Folha.
Campos -
Faço uma divisão em relação à poesia política. Existe uma poesia de agitação, agit-prop. Como os cartazes que o Maiakóvski fazia, ela toma a dianteira sobre a função estética. É como um jingle de propaganda. Fiz para o Lula, fiz para a candidatura do Suplicy e para a candidatura da Erundina.
Sempre fiz esse tipo de poemas a pedido. Não sou político; sou poeta e essa é a minha contribuição como cidadão. Agora, o poema político, como o dos sem-terra, o "Refrão à Maneira de Brecht", o que fiz posteriormente sobre o neo-liberalismo terceiro-mundista, não envolve essa dimensão pragmática. São poemas de reflexão, de testemunho de uma realidade.
No dos sem-terra, não fiz concessão nenhuma. É o contrário do agit-prop. Nesses poemas eu sou testemunha do que me fere. Há coisas do neo-capitalismo que são inadmissíveis. O mundo está dividido em pessoas economicamente viáveis e pessoas não-viáveis. Estas vão para o lixo, e o resto fica passeando de Mercedes-Benz. Não tenho mais saco.
Folha - Só que no "Refrão à Maneira de Brecht" o sr. diz que cansou de ser do contra.
Campos -
Eu queria ser a favor, mas não dá. Por exemplo: Cuba. Tudo bem, tem a coisa social, alfabetização, houve uma distribuição da riqueza, realmente em 59 aquilo foi uma paixão, mas Cuba é uma ditadura, onde os escritores são exilados, onde os homossexuais são perseguidos. Como eu posso aceitar uma coisa dessas?
Folha - Como é que o sr. explica escritores como o Saramago e o Chico Buarque, pessoas que têm acesso à informação, defenderem Cuba de uma forma tão enfática?
Campos -
Às vezes, é uma questão de paixão. Uma paixão muito grande, eu não sei. Não quero julgar os outros. A minha atitude é essa. É verdade que os Estados Unidos fazem um bloqueio que eu acho imoral. Eles fizeram grandes erros políticos em relação a Cuba.
Não souberam lidar com o problema. Mas não posso ser a favor de um regime em que a imprensa não seja livre, em que haja escritores exilados. Por que o Cabrera Infante está exilado? Porque faz críticasao regime cubano? E daí?


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