São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

A beleza americana está na produção

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Se não tivesse outro mérito, "Magnólia" teria a virtude de demonstrar a fraqueza do superestimado "Beleza Americana".
O campo referencial dos dois filmes é aproximadamente o mesmo: vida e morte de um grupo de pessoas em uma comunidade específica dos Estados Unidos. No caso de "Magnólia", os personagens vivem em um bairro de Los Angeles, em torno de uma rua com esse nome.
É um grupo maior que o de "Beleza Americana". Ali há dois homens em estado terminal (o produtor de TV Jason Robards e o apresentador Philip Baker Hall), um gênio mirim (Jeremy Blackman) e o pai que o explora, um ex-gênio mirim, hoje frustrado (William H. Macy).
Há ainda o filho que o produtor de TV abandonou na infância, hoje um bem-sucedido machista profissional (Tom Cruise), a filha drogada do apresentador de TV (Melora Waters), a mulher oportunista do produtor (Julianne Moore), um policial, um enfermeiro.
Como em "Beleza Americana", existe uma sociedade doente, corrompida pelo dinheiro, pela mentira ou pela necessidade patológica de triunfo.
No entanto, estamos em dois universos diferentes, para não dizer opostos. Em "Beleza Americana", o sentido é como que mastigado para o espectador. Os personagens não têm outra espessura além daquela que lhes confere o roteiro.
Pode-se dizer que o sentido está dado antes mesmo que o filme bata na tela. E o filme não é, a rigor, mais do que a demonstração das idéias que seus realizadores têm sobre as coisas.
Em "Magnólia", ao contrário, cada personagem permanece encerrado em seu mistério. Cada uma das histórias que se desenvolvem paralelamente comporta lapsos, ausências, pontos negros -algo que não compreendemos no momento e não compreenderemos nunca.
Como em seu filme anterior, "Boogie Nights", o diretor-roteirista Paul Thomas Anderson tem seus espectadores na conta de testemunhas, mas nunca de cúmplices. Ele não bajula desavergonhadamente a boa consciência do espectador esclarecido.
Longe disso. Ali onde os personagens de "Beleza Americana" são de uma constrangedora evidência, os de "Magnólia" são como hieróglifos. Não se deixam decifrar facilmente, e talvez seja o caso de dizer que não se deixam decifrar de forma alguma, pois não se limitam a estar encerrados em si mesmos. Mais do que isso, cada um de seus momentos constitui um em si tão forte que se comunica dificilmente com os outros instantes que eles vivem.
A estrutura do filme, com várias histórias paralelas, com certeza ajuda a fomentar esse mistério dos personagens, embora não o explique plenamente.
A própria psicologia seria uma chave enganosa. Sabemos, por exemplo, que o produtor Earl Partridge (Robards) deixou a mulher e o filho no passado.
Saberemos, em dado momento, que ela foi o único amor de sua vida. Mas nunca ficaremos sabendo por que nunca se dignou a ao menos telefonar-lhe, quando ela estava à morte.
Certamente, a psicologia ou a sociologia podem ser convocadas a explicar uma ou outra coisa. Mas, quando Tom Cruise está diante de um auditório, fazendo sua performance machista, não é isso que importa, e sim a supina verdade que transpira de seu personagem -ali está um modo de viver, de experimentar, de estar entre as coisas que não é melhor ou pior do que os outros.
Podemos pensar bem ou mal a respeito dele, pouco importa: a arte de Anderson consiste em criar tão intensamente e com tanta realidade a existência desse personagem que tanto as explicações como nossa opinião a respeito dele de algum modo tornam-se supérfluas.
O mesmo se pode dizer do rosto de Jason Robards, em permanente sofrimento não só físico como mental, não só morrendo como tentando acertar as contas com a vida.
O mesmo se pode dizer dos demais personagens e das peripécias que lhes é dado viver.
"Magnólia" é um filme excepcional, que em vários momentos lembra Ingmar Bergman, o melhor Bergman, não porque lhe copie certos tiques -como Woody Allen em tantas ocasiões-, mas porque sabe o que é um rosto e o que encerra de misterioso e intangível, ao mesmo tempo em que sabe transmitir isso ao espectador.
No mais, este filme de Paul Thomas Anderson confirma-o como uma das raras revelações do cinema americano nos anos 90.
Uma grande revelação, pois parece que estamos vendo surgir alguém do estofo de um Martin Scorsese, de um Clint Eastwood, de um Coppola.
Isto é, não só um cineasta muito talentoso, mas pouco disposto a seguir o rebanho hollywoodiano e perder-se nos jogos inconsequentes e nas concessões.
Um autor difícil, até certo ponto, mas cuja aridez é sinônimo de uma integridade inabalável. Agora é rezar para que continue assim.


Avaliação:     

Filme: Magnólia (Magnolia)
Diretor: Paul Thomas Anderson
Produção: EUA, 2000
Com: Tom Cruise, Juliane Moore, William H. Macy
Quando: a partir de hoje no Cinearte 1, Lumiére 1, Pátio Higienópolis 4, Iguatemi 1, Interlar Aricanduva 11 e circuito


Texto Anterior: 'Villa-Lobos' e 'Magnólia' abrem feriado cinéfilo
Próximo Texto: "Segredos em Família": Longa desenreda hipocrisia à la Buñuel
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.