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CONTARDO CALLIGARIS
Elite também é excluída da história do Brasil
É a semana do aniversário dos
500 anos do Brasil.
Cabe pensar como o Brasil consegue (ou não) ser uma nação. Será que os brasileiros compartilham o sentimento de uma comunidade de destino? Será que eles
têm a impressão de navegar no
mesmo barco?
O aniversário de uma comunidade não é diferente de qualquer
outro. É dia de balanço, dia de
contar os fracassos. Os fracassos
de uma comunidade são sobretudo as exclusões injustas e nefastas
que ela produziu e produz.
Aliás, o aniversário está sendo a
ocasião para que se manifestem
os que se vêem excluídos da história do país. É bom que índios e os
sem-terra convirjam para Bahia.
Prova que o Brasil ainda existe
para eles, o suficiente para que faça sentido bater na porta e fincar
o pé.
De costume, quando falamos de
exclusão, pensamos nos milhões
de brasileiros miseráveis, degredados em sua própria pátria, numa espécie de exílio interno.
Mas há outros excluídos, nos
quais talvez seja mais difícil pensar. Eles são membros das elites e,
em geral, elite e exclusão não se
conjugam muito bem. As elites
são acusadas eventualmente de se
auto-excluir, por se reconhecerem
na comunidade globalizada e
abstrata do dinheiro, mais do que
na complexidade capenga do
país.
Ora, é frequente encontrar jovens rebentos das elites brasileiras
que estudam nos EUA. Alguns
(mais do que se imagina) contam
a história de como, em um momento de sua primeira infância,
vieram morar nos EUA.
Ingenuamente, pode-se perguntar o porquê. A resposta não é encontrada facilmente. A família
não abrira nenhuma sucursal de
seu negócio nos EUA. Nenhuma
razão clara que justifique a mudança. Por um momento, parece
que foi mais uma do Mickey
Mouse seduzindo criancinhas. Ou
então as elites estão se sentindo
tão estrangeiras no Brasil que preferiram criar filhos alhures do que
no Rio, em São Paulo ou em outra
capital. Teriam escolhido, ao que
parece, uma tribo reunida por similaridade de contas bancárias e
deixado sem muito remorso os
prazeres e deveres de compartilhar a cultura e a história de um
povo mais diverso.
Foram anos de babás dedicadas
e pais pendulários entre São Paulo, Rio e alguma cidade americana, de preferência dotada de um
subúrbio luxuoso. Outras vezes a
família inteira reinventou uma
vida nos EUA. Outras ainda abriram distâncias dolorosas entre os
que se americanizaram e os que
nunca se adaptaram. Mas enfim
por que tudo isso?
A resposta é lenta, circunspecta,
atrás e por meio de pequenas
mentiras e omissões, como se houvesse alguma vergonha de família. Mas não é uma questão de
vergonha: para estes jovens, o silêncio é um antigo costume, uma
estratégia elaborada durante
anos. Eles internalizaram a regra:
"Não dizer quem são, onde estão,
para onde vão".
São jovens que passaram a infância nos Estados Unidos para
fugir do risco da criminalidade
urbana. Mais exatamente, são as
crianças da indústria do sequestro.
Em geral, permaneceram nos
EUA até a adolescência, voltando
para o Brasil apenas para as férias
e nem sempre. Ficaram com uma
dupla nacionalidade cultural e
com uma perfeita incompreensão
de sua própria infância. Difícil
para elas evitar uma desconfiança do mundo e sobretudo daquele
fragmento de mundo que se chama Brasil, onde cada encruzilhada era supostamente uma armadilha.
Difícil também evitar uma ambivalência quanto ao legado dos
pais. Pois a herança, por mais que
não fosse só estupidamente financeira, parecia acarretar uma maldição.
Cada criança e cada adulto que
foi uma daquelas crianças lida
com o passado de maneira diferente. Em comum só fica a propensão ao silêncio, pois as paredes
têm ouvidos.
Mas, atrás das maneiras singulares pelas quais eles organizam
sua memória e seu sofrimento, os
fatos e sua significação restam incontornáveis.
Foram infâncias onde o porto
seguro eram só a família mais restrita e a comunidade dos outros
ameaçados pela mesma violência
-um grupo que compartilhava
não uma cultura, mas um medo.
São crianças que viveram se escondendo de uma inveja desregrada, violenta, que a comunidade nacional não soube conter. O
funcionamento do mundo moderno lhes apareceu organizado
pela violência real.
Estes jovens poderiam se transformar em monstros predatórios.
Justificadamente. Diriam: "Não
sou daqui mesmo, o que tenho a
ver com uma pátria que não soube me proteger? Com um povo
que me persegue?".
De fato, não é o que acontece.
Para estes brasileiros que perderam a infância -como outros,
menos ditosos, a perdem nas ruas
de nossas cidades- sobra uma
tristeza, como um luto não resolvido, em que o exílio foi o preço do
privilégio.
Não sei se é muito diferente para os que não viajam e passam a
infância contemplando o mundo
através de vidros blindados e por
cima dos ombros de seguranças
armados. Este também é um exílio.
Se uma elite nacional pode fazer
falta no Brasil, a culpa talvez não
esteja toda com o Mickey Mouse,
nem com o gosto estrangeirista
das elites.
Email: ccalligari@uol.com.br
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