São Paulo, sábado, 20 de abril de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"REPARAÇÃO"

Livro, que concorreu ao Booker Prize em 2001, trata de uma escritora vivendo seus crimes e castigos

McEwan faz questionamento sobre literatura

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Ian McEwan concorreu ao Booker Prize em 2001 com "Reparação". Perdeu para o australiano Peter Carey, mas não importa: este seu romance continua sendo uma das melhores obras de ficção surgidas em língua inglesa nos últimos anos.
É raro encontrarmos um autor em pleno domínio calmo da técnica narrativa. McEwan usa, por exemplo, mais de 200 páginas para descrever um único dia na vida da família Tallis. Estamos em 1935, numa casa de campo inglesa. Briony Tallis, de 13 anos, anseia pela visita do irmão Leon, vindo de Londres. A menina quer surpreender Leon com a montagem de uma peça, "Arabella em Apuros", escrita por ela, mas vários fatores concorrem para frustrar seu propósito.
Logo de início, os atores, seus primos Jackson, Pierrot e Lola, parecem incapazes de dar conta do recado. Briony percebe que, ao contrário dos contos mirabolantes que escrevera, no drama há uma grande distância entre o que o autor imagina e o resultado.
Frustrada com o andamento dos ensaios, Briony testemunha um episódio que a perturba. Sua irmã mais velha, Cecilia, parece brigar com Robbie Turner por um vaso que é uma relíquia familiar. Os dois estão ao lado de uma velha fonte de jardim. Robbie, filho de uma faxineira, estuda com o amparo financeiro dos Tallis.
De repente, Cecilia tira a roupa e, de calcinha e sutiã, mergulha na fonte. Ela emerge pouco depois, veste-se e sai, levando o vaso.
Briony não sabe que a "briga" pelo vaso fora apenas uma ligeira disputa para ver quem o enchia com a água da fonte e que, na contenda, dois pequenos triângulos se partiram da borda da relíquia, obrigando sua irmã a resgatá-los. Briony não sabe que Robbie se apaixonara por Cecilia naquele instante e que, no decorrer do dia, essa paixão seria reciprocada.
A observação da cena representa o momento em que Briony se descobre romancista. Ela não quer mais continuar com a peça. Também passa a considerar pífios seus escritos anteriores. O incidente da fonte exibia tons mais nuançados. Ela não o compreendia direito, mas acreditava haver algo poderoso ali, capaz de dar-lhe combustível para páginas de uma ficção mais requintada.
No entanto, a interpretação de Briony para os fatos é a mais equivocada possível. Ela vê Cecilia fazer amor com Robbie na biblioteca, mas imagina que o moço esteja atacando a irmã. Em conluio tácito com Lola e Paul, ela acusa Robbie de estupro: não de Cecilia, mas de Lola.
Este é o crime de Briony, que levará a resultados funestos, como se vê em outras partes do romance, passadas durante a Segunda Guerra e em 1999, quando a menina já é uma escritora consagrada. Ao crime, segue a busca pela "reparação". "Atonement", o título original, quer dizer "reparação" e "expiação". Briony quer expiar suas culpas, purgar seus erros, reconciliar-se. O romance não deixa de ser a narrativa do crime e do castigo de Briony -castigo como mortificação por um dano talvez irreparável.
Muito se falou da semelhança entre "Reparação" e "Pelos Olhos de Maisie", de Henry James. Nos dois casos, uma garota presencia o mundo dos adultos e procura decifrar-lhe os sentidos. A diferença é que no "drama do discernimento" de James a observação leva à percepção mais intensa da realidade. Como numa revelação, o personagem descobre o sentido de algo para o qual estava cego. Briony não atina com a verdade. Sua imaginação fervilhante a impede de enxergar os fatos. Sua inocência, mas também sua perversidade, a fazem destruir vidas.
McEwan não esconde que seu romance também é uma meditação sobre a arte da ficção. Briony vai de seus dramas ingênuos para o registro refinado do movimento da consciência, como em Virginia Woolf. Sua evolução é a trajetória da prosa inglesa. Em entrevista à Folha, o autor disse que sua obra acarretava "um questionamento sobre a própria literatura".
Quase no final, descobrimos que o romance, narrado até então em terceira pessoa, fora escrito por Briony. Até que ponto ela imaginou, alterou e subverteu os fatos? A questão é: Briony é uma escritora fidedigna? Ela mentira no passado, por que falaria a verdade depois? Cecilia a acusa, em 1940: "Você não é uma testemunha confiável". Mesmo essa cena, entre a autora, Cecilia e Robbie, pode não ter ocorrido como Briony deixa a entender em 1999.
A escritora procura efetuar a reparação por meio de seu romance, mas como isso é possível? McEwan não oferece uma resposta otimista, a levarmos em conta as palavras finais de Briony: "Como pode uma romancista realizar uma reparação, se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? [...] Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas".


Reparação     
Autor: Ian McEwan
Tradutor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (444 págs.)




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