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LIVROS/LANÇAMENTOS
"REPARAÇÃO"
Livro, que concorreu ao Booker Prize em 2001, trata de uma escritora vivendo seus crimes e castigos
McEwan faz questionamento sobre literatura
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Ian McEwan concorreu ao
Booker Prize em 2001 com
"Reparação". Perdeu para o australiano Peter Carey, mas não importa: este seu romance continua
sendo uma das melhores obras de
ficção surgidas em língua inglesa
nos últimos anos.
É raro encontrarmos um autor
em pleno domínio calmo da técnica narrativa. McEwan usa, por
exemplo, mais de 200 páginas para descrever um único dia na vida
da família Tallis. Estamos em
1935, numa casa de campo inglesa. Briony Tallis, de 13 anos, anseia pela visita do irmão Leon,
vindo de Londres. A menina quer
surpreender Leon com a montagem de uma peça, "Arabella em
Apuros", escrita por ela, mas vários fatores concorrem para frustrar seu propósito.
Logo de início, os atores, seus
primos Jackson, Pierrot e Lola,
parecem incapazes de dar conta
do recado. Briony percebe que, ao
contrário dos contos mirabolantes que escrevera, no drama há
uma grande distância entre o que
o autor imagina e o resultado.
Frustrada com o andamento
dos ensaios, Briony testemunha
um episódio que a perturba. Sua
irmã mais velha, Cecilia, parece
brigar com Robbie Turner por
um vaso que é uma relíquia familiar. Os dois estão ao lado de uma
velha fonte de jardim. Robbie, filho de uma faxineira, estuda com
o amparo financeiro dos Tallis.
De repente, Cecilia tira a roupa
e, de calcinha e sutiã, mergulha na
fonte. Ela emerge pouco depois,
veste-se e sai, levando o vaso.
Briony não sabe que a "briga"
pelo vaso fora apenas uma ligeira
disputa para ver quem o enchia
com a água da fonte e que, na contenda, dois pequenos triângulos
se partiram da borda da relíquia,
obrigando sua irmã a resgatá-los.
Briony não sabe que Robbie se
apaixonara por Cecilia naquele
instante e que, no decorrer do dia,
essa paixão seria reciprocada.
A observação da cena representa o momento em que Briony se
descobre romancista. Ela não
quer mais continuar com a peça.
Também passa a considerar pífios
seus escritos anteriores. O incidente da fonte exibia tons mais
nuançados. Ela não o compreendia direito, mas acreditava haver
algo poderoso ali, capaz de dar-lhe combustível para páginas de
uma ficção mais requintada.
No entanto, a interpretação de
Briony para os fatos é a mais equivocada possível. Ela vê Cecilia fazer amor com Robbie na biblioteca, mas imagina que o moço esteja atacando a irmã. Em conluio tácito com Lola e Paul, ela acusa
Robbie de estupro: não de Cecilia,
mas de Lola.
Este é o crime de Briony, que levará a resultados funestos, como
se vê em outras partes do romance, passadas durante a Segunda
Guerra e em 1999, quando a menina já é uma escritora consagrada. Ao crime, segue a busca pela
"reparação". "Atonement", o título original, quer dizer "reparação" e "expiação". Briony quer
expiar suas culpas, purgar seus erros, reconciliar-se. O romance
não deixa de ser a narrativa do crime e do castigo de Briony -castigo como mortificação por um dano talvez irreparável.
Muito se falou da semelhança
entre "Reparação" e "Pelos Olhos
de Maisie", de Henry James. Nos
dois casos, uma garota presencia
o mundo dos adultos e procura
decifrar-lhe os sentidos. A diferença é que no "drama do discernimento" de James a observação
leva à percepção mais intensa da
realidade. Como numa revelação,
o personagem descobre o sentido
de algo para o qual estava cego.
Briony não atina com a verdade.
Sua imaginação fervilhante a impede de enxergar os fatos. Sua
inocência, mas também sua perversidade, a fazem destruir vidas.
McEwan não esconde que seu
romance também é uma meditação sobre a arte da ficção. Briony
vai de seus dramas ingênuos para
o registro refinado do movimento
da consciência, como em Virginia
Woolf. Sua evolução é a trajetória
da prosa inglesa. Em entrevista à
Folha, o autor disse que sua obra
acarretava "um questionamento
sobre a própria literatura".
Quase no final, descobrimos
que o romance, narrado até então
em terceira pessoa, fora escrito
por Briony. Até que ponto ela
imaginou, alterou e subverteu os
fatos? A questão é: Briony é uma
escritora fidedigna? Ela mentira
no passado, por que falaria a verdade depois? Cecilia a acusa, em
1940: "Você não é uma testemunha confiável". Mesmo essa cena,
entre a autora, Cecilia e Robbie,
pode não ter ocorrido como
Briony deixa a entender em 1999.
A escritora procura efetuar a reparação por meio de seu romance, mas como isso é possível?
McEwan não oferece uma resposta otimista, a levarmos em conta
as palavras finais de Briony: "Como pode uma romancista realizar
uma reparação, se, com seu poder
absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus?
[...] Na sua imaginação ela determina os limites e as condições.
Não há reparação possível para
Deus nem para os romancistas".
Reparação
Autor: Ian McEwan
Tradutor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (444 págs.)
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