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NELSON GONÇALVES
Nelson lutou boxe, mas foi campeão da canção
CARLOS RENNÓ
especial para a Folha
Nelson Gonçalves, um dos cantores mais populares da história
da MPB, foi a grande voz masculina da chamada "era de ouro" dessa música -ou a primeira de sua
fase pós-dourada. Ao surgir, já estourando, no início da década de
40, veio integrar uma constelação
formada por Francisco Alves, Orlando Silva e Silvio Caldas.
Acabou sendo também o remanescente dessas vozes potentes
que podiam dispensar microfone.
Nelson despontou no cenário
musical carioca em 1941 com um
samba de Ataulfo Alves, "Sinto-me Bem". A bem-sucedida gravação punha fim a uma série de
tentativas fracassadas. E inaugurava longa sequência de sucessos.
A fornecê-los, nos anos 40 Nelson contou sobretudo com o compositor Herivelto Martins, sozinho ("Pensando em Ti") ou em
parceria com Davi Nasser (o samba-canção "Caminhemos", o tango "Carlos Gardel"). Contou também com o pernambucano Capiba, que lhe deu um clássico ("Maria Betânia", motivo do nome de
batismo da cantora baiana, nascida quando a canção ainda estava
nas paradas, em 1946).
No início dos anos 50, um marco: Nelson Gonçalves conhece e
passa a ter a colaboração de Adelino Moreira, um dos mais impressionantes compositores-letristas
do samba-canção. Nesse terreno,
o artista dará sua mais original
contribuição ao repertório da
MPB, como cantor e também como compositor, em dupla com o
parceiro e amigo.
Da associação resultaram peças
antológicas do gênero (resultado
da assimilação do bolero e expressão do aspecto kitsch-sentimental
da cultura nacional).
As bem-sucedidas "A Volta do
Boêmio" e "Deus do Asfalto",
criadas pelo parceiro, e, assinadas
por ambos, "Escultura", "Êxtase",
"Mariposa" e "Fica Comigo Esta
Noite" são deles, da década de 50.
Nessas, contudo, é difícil precisar
até que ponto houve de fato a
co-participação de Nelson, já que,
autor mesmo, era Adelino.
De todo modo, foi ele quem deu
voz, corpo e alma a essas canções,
centradas principalmente no tema
dos amores proibidos e que, durante muito tempo, ecoaram nos
hotéis, motéis, botecos, zonas e
cabarés do país. Sua própria vida
-mergulhada, não raras vezes,
na marginalidade- deu verossimilhança existencial a elas.
Tema de biografia que inspirou
uma peça de teatro em 1996, protagonizada por Diogo Vilela, sobram-lhe, entre fatos reais e lendários, elementos de forte apelo
popular para levá-la às telas de cinema. Ao filme, quando feito, não
faltarão cenas de drama, violência, sexo, droga e prisão, baseadas
em sua verdadeira história.
Antonio Gonçalves Sobral, como foi batizado, nasceu em 21 de
junho de 1919, em Santana do Livramento, próximo ao Uruguai.
Gaúcho de nascimento, era paulista de formação. Cresceu no
bairro do Brás. Criança, ganhou o
apelido de metralha, devido a sua
gagueira (ou, segundo ele, a sua
maneira rápida demais de falar).
Seu pai, Manuel, tocava violão e
cantava em cabarés. Costumava
levá-lo, pequeno ainda, para cantar de pé sobre um caixote, em feiras da cidade. Era, na expressão do
pesquisador Sérgio Cabral, "um
português malandro" que, numa
dessas, fingiu-se de cego a fim de
arrecadar dinheiro, enquanto Nelson, menino de 5 anos, para atrair
a atenção do público, soltava a
voz, em plena praça da Sé.
Até a idade adulta, trabalharia
como engraxate, jornaleiro, mecânico e, finalmente, como garçom, no bar que seu irmão tinha
na avenida São João. Foi ali que,
na base de um pouco de malandragem (não registrava o valor total de algumas contas, embolsando parte), juntou dinheiro para ir
tentar a sorte na capital do Brasil.
No Rio, a rápida chegada do sucesso, bem como sua demorada
permanência, se deram junto com
a descoberta e a convivência com
o "bas-fond" local. Lá, o crooner
do Copacabana Palace também teve suas fases de gigolô de quatro
prostitutas na Lapa. Valentão, trocou sopapos com figuras da nata
marginal do Rio, como Meia-Noite, Miguelzinho e Madame Satã.
Sua temporada no inferno, porém, ele, ao que parece, passou em
São Paulo, mais tarde. De 1958,
quando, "traído pela mulher que
amava", começou a cheirar cocaína, até ser preso em flagrante, em
1966. Dizem que foi delatado por
Lurdinha Bittencourt, cantora
com quem manteve um tumultuado caso após o primeiro casamento, com Elvira Molla. Passou um
mês na Casa de Detenção, escapando da acusação de tráfico.
Ao drama do vício e à sua superação, vivida ao lado de sua mulher definitiva, Maria Luíza, uma
ex-fã, ele, moralista, costumava se
referir como uma das voltas por
cima que deu na vida. Da mesma
forma que, machão assumido, gabava-se de suas conquistas femininas e de sua força física (adolescente, fora campeão paulista de
boxe, peso médio). Além, obviamente, das proezas artísticas.
Aí, os números falam por si.
Mais de 2.000 canções e de 128 discos lançados (chegava a fazer um
LP/CD inteiro num único dia, cada música de uma vez só).
Ao longo de mais de cinquenta
anos de atividade, Nelson saciou
um dos maiores públicos que um
cantor brasileiro já conseguiu. E se
manteve em alta a despeito de todas as formas modernas de interpretação que sobrevieram -dos
sussurros dos bossa-novistas aos
urros dos roqueiros- com seu
vozeirão à antiga.
"Não apareceu mais nenhum
cantor com voz. Eu uso um terço
da potência da minha; não precisa
mais", afirmou sobre seu estilo,
que associava ao da pintura acadêmica: "Você olha e sabe o que é".
De fato, Nelson Gonçalves foi um
campeão. Campeão da canção.
Carlos Rennó é jornalista, letrista e produtor
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