São Paulo, segunda, 20 de abril de 1998

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NELSON GONÇALVES
Nelson lutou boxe, mas foi campeão da canção

CARLOS RENNÓ
especial para a Folha

Nelson Gonçalves, um dos cantores mais populares da história da MPB, foi a grande voz masculina da chamada "era de ouro" dessa música -ou a primeira de sua fase pós-dourada. Ao surgir, já estourando, no início da década de 40, veio integrar uma constelação formada por Francisco Alves, Orlando Silva e Silvio Caldas.
Acabou sendo também o remanescente dessas vozes potentes que podiam dispensar microfone.
Nelson despontou no cenário musical carioca em 1941 com um samba de Ataulfo Alves, "Sinto-me Bem". A bem-sucedida gravação punha fim a uma série de tentativas fracassadas. E inaugurava longa sequência de sucessos.
A fornecê-los, nos anos 40 Nelson contou sobretudo com o compositor Herivelto Martins, sozinho ("Pensando em Ti") ou em parceria com Davi Nasser (o samba-canção "Caminhemos", o tango "Carlos Gardel"). Contou também com o pernambucano Capiba, que lhe deu um clássico ("Maria Betânia", motivo do nome de batismo da cantora baiana, nascida quando a canção ainda estava nas paradas, em 1946).
No início dos anos 50, um marco: Nelson Gonçalves conhece e passa a ter a colaboração de Adelino Moreira, um dos mais impressionantes compositores-letristas do samba-canção. Nesse terreno, o artista dará sua mais original contribuição ao repertório da MPB, como cantor e também como compositor, em dupla com o parceiro e amigo.
Da associação resultaram peças antológicas do gênero (resultado da assimilação do bolero e expressão do aspecto kitsch-sentimental da cultura nacional).
As bem-sucedidas "A Volta do Boêmio" e "Deus do Asfalto", criadas pelo parceiro, e, assinadas por ambos, "Escultura", "Êxtase", "Mariposa" e "Fica Comigo Esta Noite" são deles, da década de 50. Nessas, contudo, é difícil precisar até que ponto houve de fato a co-participação de Nelson, já que, autor mesmo, era Adelino.
De todo modo, foi ele quem deu voz, corpo e alma a essas canções, centradas principalmente no tema dos amores proibidos e que, durante muito tempo, ecoaram nos hotéis, motéis, botecos, zonas e cabarés do país. Sua própria vida -mergulhada, não raras vezes, na marginalidade- deu verossimilhança existencial a elas.
Tema de biografia que inspirou uma peça de teatro em 1996, protagonizada por Diogo Vilela, sobram-lhe, entre fatos reais e lendários, elementos de forte apelo popular para levá-la às telas de cinema. Ao filme, quando feito, não faltarão cenas de drama, violência, sexo, droga e prisão, baseadas em sua verdadeira história.
Antonio Gonçalves Sobral, como foi batizado, nasceu em 21 de junho de 1919, em Santana do Livramento, próximo ao Uruguai.
Gaúcho de nascimento, era paulista de formação. Cresceu no bairro do Brás. Criança, ganhou o apelido de metralha, devido a sua gagueira (ou, segundo ele, a sua maneira rápida demais de falar).
Seu pai, Manuel, tocava violão e cantava em cabarés. Costumava levá-lo, pequeno ainda, para cantar de pé sobre um caixote, em feiras da cidade. Era, na expressão do pesquisador Sérgio Cabral, "um português malandro" que, numa dessas, fingiu-se de cego a fim de arrecadar dinheiro, enquanto Nelson, menino de 5 anos, para atrair a atenção do público, soltava a voz, em plena praça da Sé.
Até a idade adulta, trabalharia como engraxate, jornaleiro, mecânico e, finalmente, como garçom, no bar que seu irmão tinha na avenida São João. Foi ali que, na base de um pouco de malandragem (não registrava o valor total de algumas contas, embolsando parte), juntou dinheiro para ir tentar a sorte na capital do Brasil.
No Rio, a rápida chegada do sucesso, bem como sua demorada permanência, se deram junto com a descoberta e a convivência com o "bas-fond" local. Lá, o crooner do Copacabana Palace também teve suas fases de gigolô de quatro prostitutas na Lapa. Valentão, trocou sopapos com figuras da nata marginal do Rio, como Meia-Noite, Miguelzinho e Madame Satã.
Sua temporada no inferno, porém, ele, ao que parece, passou em São Paulo, mais tarde. De 1958, quando, "traído pela mulher que amava", começou a cheirar cocaína, até ser preso em flagrante, em 1966. Dizem que foi delatado por Lurdinha Bittencourt, cantora com quem manteve um tumultuado caso após o primeiro casamento, com Elvira Molla. Passou um mês na Casa de Detenção, escapando da acusação de tráfico.
Ao drama do vício e à sua superação, vivida ao lado de sua mulher definitiva, Maria Luíza, uma ex-fã, ele, moralista, costumava se referir como uma das voltas por cima que deu na vida. Da mesma forma que, machão assumido, gabava-se de suas conquistas femininas e de sua força física (adolescente, fora campeão paulista de boxe, peso médio). Além, obviamente, das proezas artísticas.
Aí, os números falam por si. Mais de 2.000 canções e de 128 discos lançados (chegava a fazer um LP/CD inteiro num único dia, cada música de uma vez só).
Ao longo de mais de cinquenta anos de atividade, Nelson saciou um dos maiores públicos que um cantor brasileiro já conseguiu. E se manteve em alta a despeito de todas as formas modernas de interpretação que sobrevieram -dos sussurros dos bossa-novistas aos urros dos roqueiros- com seu vozeirão à antiga.
"Não apareceu mais nenhum cantor com voz. Eu uso um terço da potência da minha; não precisa mais", afirmou sobre seu estilo, que associava ao da pintura acadêmica: "Você olha e sabe o que é". De fato, Nelson Gonçalves foi um campeão. Campeão da canção.


Carlos Rennó é jornalista, letrista e produtor



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