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CONTARDO CALLIGARIS
De onde vem o autoritarismo?
A história é conhecida: o
"New York Times" de 9 de
maio publicou um artigo de seu
correspondente, Larry Rohter,
afirmando que havia no Brasil
uma "preocupação nacional"
com o uso de álcool pelo presidente Lula. O presidente reagiu cassando o visto do jornalista e
ameaçando sua expulsão. O Legislativo intercedeu, a imprensa
entrou em campanha, e uma liminar do Superior Tribunal de
Justiça protegeu Rohter. O governo recuou. Ótimo.
Mas por que um Poder Executivo democrático se extraviou numa birra autoritária supérflua?
Eis uma das respostas possíveis.
Em antropologia e em psicologia, vale esta implicação: quando
um sujeito ou um grupo consideram que sua dignidade não é reconhecida pela comunidade da
qual supostamente eles fazem
parte, esse sujeito ou esse grupo se
afirmam no braço.
Exemplo. A violência de nossas
ruas não é fruto da miséria, mas
da exclusão. Por mais que alguém
seja desfavorecido, se ele constatar que a comunidade o reconhece como cidadão, seu protesto poderá respeitar a lei comum. Mas
imagine que, pela desigualdade
excessiva ou por tradição escravagista, pobres e miseráveis sejam
propriamente deserdados. Aos filhos deserdados é recusada, com a
herança, a qualidade de filhos; da
mesma forma, aos deserdados sociais é negada a qualidade de cidadãos. O fracasso que lhes toca
não é só econômico, ele é simbólico. E a quem é excluído simbolicamente (a quem se sente socialmente insignificante) sobra impor-se no real, na marra.
Esse mecanismo explica (parcialmente, é óbvio) por que,
quando os deserdados ou seus representantes chegam ao poder,
eles sucumbem facilmente a tentações autoritárias. Uma história
de exclusão os predispõe a acreditar que, mesmo no governo, eles
continuarão excluídos. Convencidos de que a dignidade de seu poder não está sendo reconhecida,
fazem-se valer pela brutalidade.
Uma dinâmica parecida pode
funcionar entre nações. O economista Alfredo Behrens me fazia
observar, numa conversa, que "a
suscetibilidade é uma doença afetiva do subdesenvolvimento".
Notas
1) Qualquer dificuldade simbólica (não só uma história de exclusão social) pode levar um governo a mostrar músculos desnecessários. É possível, por exemplo,
que o autoritarismo do atual governo americano seja também
um efeito do pleito duvidoso que
elegeu o presidente Bush. Uma incerteza quanto à legitimidade do
governo seria compensada pela
brutalidade no exercício do poder.
2) Alguém deveria ter assinalado ao presidente Lula que o artigo
de Rohter, estranho para os padrões de nossa imprensa, é banal
na cultura americana, onde a)
quem se dedica à vida pública renuncia à privacidade; b) é tarefa
básica da imprensa vasculhar a
vida do homem público. Nos
EUA, qualquer candidato enfrenta interrogatórios, investigações,
boatos sobre seus hábitos, costumes, comportamentos sexuais e
por aí vai.
Alguém também deveria ter explicado ao presidente que, na cultura americana, a menção de sua
difícil história familiar e do alcoolismo de seu pai não constituem
uma ofensa. Para qualquer americano, esses traços valem como
elogios, pois salientam a dificuldade do caminho que o filho percorreu.
3) O chanceler Celso Amorim
declarou que o artigo de Rohter
ofendia a honra da nação. É uma
retórica análoga à dos fascismos
europeus: às armas, cidadãos, alguém (um estrangeiro, claro) desrespeita a mãe pátria. Talvez fosse mais sábio entender que a nação tem mais a ver com um conjunto de valores do que com um
território à espera de ser violado
pelo invasor. Nessa ótica, quem
ofende a nação é quem desrespeita um valor fundamental, como a
liberdade de expressão. Por exemplo, aos americanos é permitido
protestar queimando a bandeira,
pois a nação seria ofendida muito
mais pela interdição de queimar
a bandeira do que pelo próprio
ato de queimá-la.
4) O porta-voz da Presidência,
André Singer, afirmou que o artigo de Rohter, ofendendo o presidente, ofendia a instituição da
Presidência. Incompreensível: a
Presidência continua intata mesmo se o presidente escarra, faz cocô, bebe, fuma, transa ou, pior, se
ele é corrupto, cocainômano ou
idiota. André Singer certamente
leu "Os Dois Corpos do Rei", de
Ernest Kantorowicz. Talvez o
exemplar da biblioteca do Alvorada tenha sido perdido.
5) O antiamericanismo, por
mais que tenha razões históricas,
é uma escapatória tradicional para elites decadentes e vorazes. É o
caso em muitos países islâmicos
do Oriente Médio: fogo na bandeira americana e pedras no
McDonald's são distrações que
impedem de pensar que a situação é sobretudo culpa dos poderosos de casa.
Não há por que suspeitar que o
governo atual queira proteger as
elites nacionais, mas, segundo o
"Painel" da Folha de 13 de maio,
o presidente contava com a boa
repercussão interna de sua decisão: achava que o público gostaria (cito a Folha) "de ver o Brasil
"enfrentando" os EUA". Como
não dá mais para oferecer jogos
de gladiadores ou bingos, demos
ao povo um pouco de antiamericanismo, para que se divirta.
6) Depois de ter cassado o visto
de Rohter, o presidente declarou
que o gesto "serviria de exemplo".
Em matéria de autoritarismo, essa foi a pior, a que me obrigou a
escrever (postergando a continuação da coluna da semana
passada). Pois me ensinaram assim: quando alguém quer nos intimidar, é a hora de se expor, pagar o blefe ou levar uma paulada,
tanto faz; o importante é forçar
quem intimida a mostrar seu jogo. Aliás, se alguém do governo
não gostou do que escrevi, é só
mandar um e-mail pedindo meu
número de RNE.
ccalligari@uol.com.br
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