São Paulo, sábado, 20 de maio de 2006

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RODAPÉ

Olhar atônito sobre os acidentes de superfície

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Tradutor de autores como Durkheim e Lévi-Strauss, letrista e compositor de música popular, Paulo Neves lança nesta semana "Viagem, Espera - 40 Poemas e Outros Escritos". A estréia literária aos 59 anos sugere um escritor bissexto, para quem a poesia é uma atividade paralela.
Entretanto, a qualidade de seu trabalho não é episódica, mas destinada a deixar um traço duradouro -viagem que inocula no leitor à espera por novas viagens. Esses 40 poemas, bem como as variações em prosa e as "crônicas breves" que ocupam dois terços do volume, encerram um percurso literário que, sob uma "chocante e aparente simplicidade" (nas palavras de apresentação de José Miguel Wisnik, seu parceiro musical), desvelam um olhar atônito sobre fatos triviais.
A apreciação de um poeta independe de referências intelectuais ou influências, mas estas podem fornecer uma imagem sintética das cordas que nele vibram. Nesse sentido, pode-se dizer que na poesia de Paulo Neves confluem, de um lado, a complexa compreensão das coisas elementares proposta pela lírica de Alberto Caeiro (o heterônimo de Fernando Pessoa citado em epígrafe extraída de "O Guardador de Rebanhos") e, de outro, aquela atenção para "os pequenos e invisíveis acidentes de superfície" consagrada pelo antilirismo de nossos modernistas.
A essas referências, somam-se celebrações contidas nos poemas que abrem o volume -como "Van Gogh" (o artista que expressou a "vontade agressiva/ de raspar, arrancar à unha/ a pele podre da vida") e "Pessoa" (em que a dívida para com o poeta-fingidor se explicita: "No fingimento de teus versos/ descobri que a língua podia/ sentir-me fora de mim").
Do atrito entre o fora e o dentro, entre a pura presença do mundo físico e a verticalidade da vida interior -que é também um atrito entre a opacidade das coisas e a transparência das palavras-, surge uma outra dicotomia: o confronto do homem só com a sociedade à sua volta.
A leitura de dois poemas que transcrevo na íntegra mostra ênfases nesses momentos complementares. Um deles se intitula "O Medo": "Água passando/ de um vaso a outro/ num murmúrio./ De repente um salto/ e o mergulho na infância:/ o medo de ser sugado/ por uma vida estranha/ ao entrar num quarto escuro."
O outro é "Homem-Sanduíche": "O que exprime esse homem/ prensado entre as placas/ do anúncio "compra-se ouro'?/ ruína? humilhação? o mudo/ espelho da multidão?/ Seu olhar postiço como a cabeça/ me atinge e me faz discernir/ no traço grotesco imposto de fora/ o esforço por existir/ que o anima por dentro."
A experiência interior do primeiro poema (o menino assombrado por uma fantasia meio primitiva, meio sobrenatural) se transforma, no segundo, em pesadelo da identidade social (o "homem-sanduíche" que aluga o corpo carregando cartazes publicitários); a "vida estranha" irrompe ora como elemento psíquico, ora como "espelho da multidão" -força alienante que deforma, torna grotesco, porém não cancela o "esforço por existir".
Neves tira dessa tensão uma poética, expressa nos versos metalingüísticos de "Invocação" -em que imagina um diálogo no qual o poeta pede à poesia que lhe dê "a medida do possível", ao que essa retruca pedindo-lhe "não o que ainda falta/ mas o que excede/ à palavra mais exata,/ a plenitude sensível".
Compreende-se assim porque, quando surgem os textos híbridos da parte final do livro, o registro esteja longe do prosaísmo. "O que me encanta na prosa é sua cara desarrumada de poesia", escreve ele em dois versos que apresentam a seção "Caderno de Prosa & Poesia". Com uma intensidade que não se confunde com estilo estetizante ou pomposo, ele lança foco sobre reminiscências, cenas e gestos cotidianos -sempre dentro da idéia (contida no escrito que dá título ao livro) de que "o poema é o encontro, numa frase, de uma imagem e de uma emoção".


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente nesta coluna
Viagem, Espera
    
Autor: Paulo Neves Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29 (126 págs.) Lançamento: dia 23, às 19h, na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, SP, tel. 0/xx/11/3814-5811)


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