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RODAPÉ
Olhar atônito sobre os acidentes de superfície
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Tradutor de autores como
Durkheim e Lévi-Strauss, letrista e compositor de música popular, Paulo Neves lança nesta semana "Viagem, Espera - 40 Poemas e Outros Escritos". A estréia
literária aos 59 anos sugere um escritor bissexto, para quem a poesia é uma atividade paralela.
Entretanto, a qualidade de seu
trabalho não é episódica, mas
destinada a deixar um traço duradouro -viagem que inocula no
leitor à espera por novas viagens.
Esses 40 poemas, bem como as
variações em prosa e as "crônicas
breves" que ocupam dois terços
do volume, encerram um percurso literário que, sob uma "chocante e aparente simplicidade"
(nas palavras de apresentação de
José Miguel Wisnik, seu parceiro
musical), desvelam um olhar atônito sobre fatos triviais.
A apreciação de um poeta independe de referências intelectuais
ou influências, mas estas podem
fornecer uma imagem sintética
das cordas que nele vibram. Nesse
sentido, pode-se dizer que na
poesia de Paulo Neves confluem,
de um lado, a complexa compreensão das coisas elementares
proposta pela lírica de Alberto
Caeiro (o heterônimo de Fernando Pessoa citado em epígrafe extraída de "O Guardador de Rebanhos") e, de outro, aquela atenção
para "os pequenos e invisíveis acidentes de superfície" consagrada
pelo antilirismo de nossos modernistas.
A essas referências, somam-se
celebrações contidas nos poemas
que abrem o volume -como
"Van Gogh" (o artista que expressou a "vontade agressiva/ de raspar, arrancar à unha/ a pele podre
da vida") e "Pessoa" (em que a dívida para com o poeta-fingidor se
explicita: "No fingimento de teus
versos/ descobri que a língua podia/ sentir-me fora de mim").
Do atrito entre o fora e o dentro,
entre a pura presença do mundo
físico e a verticalidade da vida interior -que é também um atrito
entre a opacidade das coisas e a
transparência das palavras-,
surge uma outra dicotomia: o
confronto do homem só com a
sociedade à sua volta.
A leitura de dois poemas que
transcrevo na íntegra mostra ênfases nesses momentos complementares. Um deles se intitula "O
Medo": "Água passando/ de um
vaso a outro/ num murmúrio./ De
repente um salto/ e o mergulho na
infância:/ o medo de ser sugado/
por uma vida estranha/ ao entrar
num quarto escuro."
O outro é "Homem-Sanduíche": "O que exprime esse homem/ prensado entre as placas/
do anúncio "compra-se ouro'?/
ruína? humilhação? o mudo/ espelho da multidão?/ Seu olhar
postiço como a cabeça/ me atinge
e me faz discernir/ no traço grotesco imposto de fora/ o esforço
por existir/ que o anima por dentro."
A experiência interior do primeiro poema (o menino assombrado por uma fantasia meio primitiva, meio sobrenatural) se
transforma, no segundo, em pesadelo da identidade social (o
"homem-sanduíche" que aluga o
corpo carregando cartazes publicitários); a "vida estranha" irrompe ora como elemento psíquico,
ora como "espelho da multidão"
-força alienante que deforma,
torna grotesco, porém não cancela o "esforço por existir".
Neves tira dessa tensão uma
poética, expressa nos versos metalingüísticos de "Invocação"
-em que imagina um diálogo no
qual o poeta pede à poesia que lhe
dê "a medida do possível", ao que
essa retruca pedindo-lhe "não o
que ainda falta/ mas o que excede/
à palavra mais exata,/ a plenitude
sensível".
Compreende-se assim porque,
quando surgem os textos híbridos
da parte final do livro, o registro
esteja longe do prosaísmo. "O que
me encanta na prosa é sua cara
desarrumada de poesia", escreve
ele em dois versos que apresentam a seção "Caderno de Prosa &
Poesia". Com uma intensidade
que não se confunde com estilo
estetizante ou pomposo, ele lança
foco sobre reminiscências, cenas e
gestos cotidianos -sempre dentro da idéia (contida no escrito
que dá título ao livro) de que "o
poema é o encontro, numa frase,
de uma imagem e de uma emoção".
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente nesta coluna
Viagem, Espera
Autor: Paulo Neves
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (126 págs.)
Lançamento: dia 23, às 19h, na Livraria
da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, SP, tel.
0/xx/11/3814-5811)
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