São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 2000


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ARNALDO JABOR
Queremos sequestros com "happy end" sangrento

O CRIMINOSO não matou ninguém. Esta foi uma das decepções que tivemos com o terrível sequestro do ônibus no Rio. Ele era o mal, o crime, a violência e, no entanto, quem matou a refém foi a polícia, que depois estrangulou o criminoso.
Houve uma brutal reversão de expectativa nesse filme de horror, que ficou diferente do que talvez o bandido imaginara quando berrou: "Isso aqui não é filme de Hollywood não... Aqui, acaba mal..." Acabou mal, mas com roteiro reescrito pela polícia. Ficamos indignados com o final do filme. Eu pergunto: e se o criminoso tivesse sido baleado e morto, com os reféns intactos, não teríamos celebrado o "happy end"? Faríamos um carnaval sobre o cadáver: "Uh tererê! Viva!". E os PMs seriam heróis.
Eu mesmo delirei quando chegou a primeira notícia de que o cara tinha morrido, mas logo depois chegou o anticlímax, com a morte da moça, e senti-me trapaceado, frustrado em minha expectativa catártica pela cidadania. E, diante da dolorosa morte da refém, começaram a chover cartas de leitores, comentários na TV, nas ruas, todos expressando impotência e dor.
A verdade é que estamos impotentes diante dos fatos, não só no crime como na política, pois as coisas passaram a mandar nos homens e os governos ficaram ficcionais. O sequestro-pastelão foi um exemplo claro dessa impotência. Os fatos estão muito além das interpretações.
Só dispomos de adjetivos, e a realidade se move com duros substantivos. "Violência", por exemplo, é uma palavra abstrata, genérica. Só temos protestos éticos, expressões de horror e nojo diante de um labirinto de coisas concretas que, como uma favela de substantivos, se estende de forma insolúvel pelo país.
Essa tal "violência" não tem solução. Só seria resolvida por uma conjugação de mudanças sociais e políticas que nenhum governo tem condições de efetuar. A quem se dirigem as milhares de cartas dos leitores? São gritos soltos no ar, dirigidos a quem? A Deus, à vaga figura do presidente, ao incessante e vasto universo? Sentimo-nos ridículos diante do que aconteceu. Desamparados diante da vida absurda de hoje, na qual se pode morrer num ônibus ou afogado na marginal Tietê, numa enchente.
O que aconteceu no mundo real, substantivo? Um rapaz de 21 anos, miserável, sem dentes, sem identidade, sem nome -pois não se sabe se ele se chamava Sérgio ou Alex Júnior da Silva ou Sandro Nascimento-, sem pai, talvez sem mãe -pois a pretensa mãe não queria reconhecê-lo-, um rapaz desgraçado que, exatamente em junho de 1993, por acaso, sobrou da chacina da Candelária, ainda com 13 anos de idade.
Alguém cuidou dele, alguma instituição pública o protegeu depois? Não. Ficou por aí, olhando a vida de fora, do ponto de vista da sarjeta, do esgoto, enquanto nós outros vivíamos, desejávamos, tínhamos projetos. Ele era um aborto que sobreviveu, um cadáver insepulto que foi finalmente estrangulado, terminando-se o "serviço" incompleto de sete anos atrás. E, sobre ele, derramamos nossos adjetivos escandalizados: "Que horror, que violência, que incúria, que merda...".
Ele não assaltou o ônibus. Foi denunciado por alguém como um marginal armado na viatura e cercado pela polícia, começando aí o dia de cão. Quem nos garante que ele ia matar alguém? O rapaz, sem dentes, muito louco (crack?) -como se viu pelos pedidos dele (granadas, R$ 1.000...), pela sua tagarelice muito doida, meio "funk", cantando a musica "Delegado,Vai Morrer Mais Um!"-, viu-se diante de um destino sem saída, viu-se como o protagonista de um filme policial.
Poderia ter se entregado, mas a lógica dramática da cena demandava aquela resposta, o roteiro escrito pela polícia, pela TV, por nosso imaginário levava àquela ação. Ele era feio, brabo e caprichou ainda mais na cena de ameaças, fingindo-se mais "malvado" do que talvez fosse.
Por que teve a idéia da "mise-en-scène", do teatro de fingir que teria "matado" a outra moça deitada no chão? Ele queria inspirar medo, fazendo a mímica da chacina de que escapara há exatos sete anos. Tenho o palpite de que ele ia se entregar, depois de nos chocar com sua miséria insuportável, sua bravata pobre, com a ilógica de seu comportamento. Ele queria nos mostrar que era um estorvo sim, um trambolho, um "bode preto" em nosso sossego.
Tão ridículo era aquele pobre diabo sequestrando um ônibus sem motivo que todos ansiávamos por vê-lo morto, como uma barata, um rato que estragava a tarde carioca. Torcemos para que acertassem aquele "filho da puta" e para que acabassem logo com aquela chateação, aquela zoada e restaurassem o nosso sentimento de "normalidade" naquele lindo dia do Rio de Janeiro.
Ele soltou um primeiro refém, que se disse "estudante", e retrucou: "Estudante? Você deu sorte, pode sair..." -logo ele, sem escola, sem nome... Por que o protegeu? Soltou um aleijado e ia, claramente, se entregar na saída, pois estava ali sem futuro, quando a estupidez de um soldado, trapalhão como ele, mudou o fim da fita.
Assistimos a um show de peripécias sangrentas: marginal muito louco contra policiais babacas sem equipamento, sem comando, sem treinamento. Tudo formal, tudo adjetivo, tudo de mentira -polícia de mentira, criminoso de mentira e mulher morta de verdade. Só isso aconteceu: um nada com final sangrento.
Essa é nossa angústia; mais que medo, estamos com vergonha do absurdo de nossa mentirosa e fracassada organização social. Em tudo fica provado que o principal defeito brasileiro é a ineficiência, é deixar as coisas pela metade, errar o alvo constantemente.
O espetáculo do sequestro não cumpriu as boas regras da dramaturgia americana. O filme acabou mal. O país inteiro achava que assistia a um drama de suspense, um filme tipo "Um Dia de Cão", e acabou vendo uma tragicomédia pastelão. Com o mundo atual é a mesma coisa. Quero meu dinheiro de volta.


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