|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARNALDO JABOR
Queremos sequestros com "happy end" sangrento
O CRIMINOSO não matou ninguém. Esta foi uma
das decepções que tivemos com o
terrível sequestro do ônibus no
Rio. Ele era o mal, o crime, a violência e, no entanto, quem matou
a refém foi a polícia, que depois
estrangulou o criminoso.
Houve uma brutal reversão de
expectativa nesse filme de horror,
que ficou diferente do que talvez o
bandido imaginara quando berrou: "Isso aqui não é filme de
Hollywood não... Aqui, acaba
mal..." Acabou mal, mas com roteiro reescrito pela polícia. Ficamos indignados com o final do filme. Eu pergunto: e se o criminoso
tivesse sido baleado e morto, com
os reféns intactos, não teríamos
celebrado o "happy end"? Faríamos um carnaval sobre o cadáver:
"Uh tererê! Viva!". E os PMs seriam heróis.
Eu mesmo delirei quando chegou a primeira notícia de que o
cara tinha morrido, mas logo depois chegou o anticlímax, com a
morte da moça, e senti-me trapaceado, frustrado em minha expectativa catártica pela cidadania. E, diante da dolorosa morte
da refém, começaram a chover
cartas de leitores, comentários na
TV, nas ruas, todos expressando
impotência e dor.
A verdade é que estamos impotentes diante dos fatos, não só no
crime como na política, pois as
coisas passaram a mandar nos
homens e os governos ficaram ficcionais. O sequestro-pastelão foi
um exemplo claro dessa impotência. Os fatos estão muito além das
interpretações.
Só dispomos de adjetivos, e a
realidade se move com duros
substantivos. "Violência", por
exemplo, é uma palavra abstrata,
genérica. Só temos protestos éticos, expressões de horror e nojo
diante de um labirinto de coisas
concretas que, como uma favela
de substantivos, se estende de forma insolúvel pelo país.
Essa tal "violência" não tem solução. Só seria resolvida por uma
conjugação de mudanças sociais
e políticas que nenhum governo
tem condições de efetuar. A quem
se dirigem as milhares de cartas
dos leitores? São gritos soltos no
ar, dirigidos a quem? A Deus, à
vaga figura do presidente, ao incessante e vasto universo? Sentimo-nos ridículos diante do que
aconteceu. Desamparados diante
da vida absurda de hoje, na qual
se pode morrer num ônibus ou
afogado na marginal Tietê, numa
enchente.
O que aconteceu no mundo
real, substantivo? Um rapaz de 21
anos, miserável, sem dentes, sem
identidade, sem nome -pois não
se sabe se ele se chamava Sérgio
ou Alex Júnior da Silva ou Sandro
Nascimento-, sem pai, talvez
sem mãe -pois a pretensa mãe
não queria reconhecê-lo-, um
rapaz desgraçado que, exatamente em junho de 1993, por acaso,
sobrou da chacina da Candelária,
ainda com 13 anos de idade.
Alguém cuidou dele, alguma
instituição pública o protegeu depois? Não. Ficou por aí, olhando a
vida de fora, do ponto de vista da
sarjeta, do esgoto, enquanto nós
outros vivíamos, desejávamos, tínhamos projetos. Ele era um
aborto que sobreviveu, um cadáver insepulto que foi finalmente
estrangulado, terminando-se o
"serviço" incompleto de sete anos
atrás. E, sobre ele, derramamos
nossos adjetivos escandalizados:
"Que horror, que violência, que
incúria, que merda...".
Ele não assaltou o ônibus. Foi
denunciado por alguém como um
marginal armado na viatura e
cercado pela polícia, começando
aí o dia de cão. Quem nos garante
que ele ia matar alguém? O rapaz,
sem dentes, muito louco (crack?)
-como se viu pelos pedidos dele
(granadas, R$ 1.000...), pela sua
tagarelice muito doida, meio
"funk", cantando a musica "Delegado,Vai Morrer Mais Um!"-,
viu-se diante de um destino sem
saída, viu-se como o protagonista
de um filme policial.
Poderia ter se entregado, mas a
lógica dramática da cena demandava aquela resposta, o roteiro escrito pela polícia, pela TV, por
nosso imaginário levava àquela
ação. Ele era feio, brabo e caprichou ainda mais na cena de
ameaças, fingindo-se mais "malvado" do que talvez fosse.
Por que teve a idéia da "mise-en-scène", do teatro de fingir que
teria "matado" a outra moça deitada no chão? Ele queria inspirar
medo, fazendo a mímica da chacina de que escapara há exatos sete anos. Tenho o palpite de que ele
ia se entregar, depois de nos chocar com sua miséria insuportável,
sua bravata pobre, com a ilógica
de seu comportamento. Ele queria nos mostrar que era um estorvo sim, um trambolho, um "bode
preto" em nosso sossego.
Tão ridículo era aquele pobre
diabo sequestrando um ônibus
sem motivo que todos ansiávamos por vê-lo morto, como uma
barata, um rato que estragava a
tarde carioca. Torcemos para que
acertassem aquele "filho da puta"
e para que acabassem logo com
aquela chateação, aquela zoada e
restaurassem o nosso sentimento
de "normalidade" naquele lindo
dia do Rio de Janeiro.
Ele soltou um primeiro refém,
que se disse "estudante", e retrucou: "Estudante? Você deu sorte,
pode sair..." -logo ele, sem escola, sem nome... Por que o protegeu? Soltou um aleijado e ia, claramente, se entregar na saída,
pois estava ali sem futuro, quando a estupidez de um soldado,
trapalhão como ele, mudou o fim
da fita.
Assistimos a um show de peripécias sangrentas: marginal muito louco contra policiais babacas
sem equipamento, sem comando,
sem treinamento. Tudo formal,
tudo adjetivo, tudo de mentira
-polícia de mentira, criminoso
de mentira e mulher morta de
verdade. Só isso aconteceu: um
nada com final sangrento.
Essa é nossa angústia; mais que
medo, estamos com vergonha do
absurdo de nossa mentirosa e fracassada organização social. Em
tudo fica provado que o principal
defeito brasileiro é a ineficiência,
é deixar as coisas pela metade, errar o alvo constantemente.
O espetáculo do sequestro não
cumpriu as boas regras da dramaturgia americana. O filme
acabou mal. O país inteiro achava que assistia a um drama de
suspense, um filme tipo "Um Dia
de Cão", e acabou vendo uma
tragicomédia pastelão. Com o
mundo atual é a mesma coisa.
Quero meu dinheiro de volta.
Texto Anterior: Suíça vê Geraldo de Barros Próximo Texto: Literatura: Prateleiras voltam a ter lirismo de Cacaso Índice
|