São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 2000


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CRÍTICA
"Beijo na Boca" desmonta romantismo com ironia

HEITOR FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com um pouco de desencanto, outro tanto de ironia, Cacaso dá um nó na lírica amorosa em seu "Beijo na Boca", livro de 75 que reaparece numa simpática edição.
Trata-se de um livro manhoso, no qual o poeta lança mão de toda a tradição da poesia brasileira, do romantismo ao modernismo, para flagrar nos seus versos as trapaças do jogo amoroso. Ou, como disse certa vez Francisco Alvim, seu companheiro literário, monta seus poemas "a partir de elementos falsamente nostálgicos dessa inocência perdida, para melhor e mais perfidamente corroer qualquer sentido de epifania".
A manha (ou perfídia) é salpicar o poema com elementos retirados de um lirismo comum, às vezes banal, e colocá-los em contato direto com a realidade do desejo, que é sempre múltiplo. Ele mesmo escreve em "De Almanaque": "Como pode meu amor sendo um só/ser tão dividido?"
Pelos poemas, passam imagens que, se por um lado têm o clima dos apaixonados, por outro acabam servindo, paradoxalmente, como um antídoto para o lirismo melado ou derramado, pois o que poderia ser sublime logo se desarma por meio da ironia.
Um exemplo disso é "E com vocês a modernidade", que abre o livro: "Meu verso é profundamente romântico./Choram cavaquinhos luares se derramam e vai/ por aí a longa sombra de rumores e ciganos./Ai que saudades que tenho de meus negros verdes/anos!".
Sua poesia foi fortemente marcada pelo ambiente literário dos anos 70, da chamada "poesia marginal", da qual ele foi um dos principais críticos e entusiastas. O humor, a linguagem coloquial, o verso curto, que acabaram ficando como um dos registros dessa poesia, aparecem combinados num aprendizado amoroso, pois todo o livro é cuidadosamente armado em torno desse tema. Aprendizado no qual é patente o desencanto romântico e ingênuo.
Fala de amores presentes e passados (como na bela série sobre a "ex-namorada", na qual se percebe a influência dos poemas amorosos de Murilo Mendes), mas sempre pontuado por incompreensão e desencontro, pois não há "nada mais ameaçador que os olhos do amor". Ao mesmo tempo, é experiência revelada que também reconhece seu fracasso, como se lê em "Passeio no bosque": "O canivete na mão não deixa/ marcas no tronco da goiabeira// cicatrizes não se transferem".
A reedição de "Beijo na Boca" pode ser vista hoje como o retorno de uma poesia que não poderia ser jamais esquecida e que traz uma lição de liberdade de criação, principalmente agora quando muitos se voltam para uma poesia que se quer séria, empolada, distante da experiência cotidiana.
Como diz a orelha, trata-se de uma obra poética que não nos suborna "com o velho lirismo torta-de-groselha das ilusões perdidas". Cacaso foi um bom poeta e relê-lo é sempre um grande prazer.


Heitor Ferraz é poeta e autor de "A Mesma Noite" Beijo na Boca      Autor: Cacaso Editora: 7 Letras Quanto: R$ 12 (64 págs.)


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