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CRÍTICA
"Beijo na Boca" desmonta romantismo com ironia
HEITOR FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com um pouco de desencanto,
outro tanto de ironia, Cacaso dá
um nó na lírica amorosa em seu
"Beijo na Boca", livro de 75 que
reaparece numa simpática edição.
Trata-se de um livro manhoso,
no qual o poeta lança mão de toda
a tradição da poesia brasileira, do
romantismo ao modernismo, para flagrar nos seus versos as trapaças do jogo amoroso. Ou, como
disse certa vez Francisco Alvim,
seu companheiro literário, monta
seus poemas "a partir de elementos falsamente nostálgicos dessa
inocência perdida, para melhor e
mais perfidamente corroer qualquer sentido de epifania".
A manha (ou perfídia) é salpicar
o poema com elementos retirados
de um lirismo comum, às vezes
banal, e colocá-los em contato direto com a realidade do desejo,
que é sempre múltiplo. Ele mesmo escreve em "De Almanaque":
"Como pode meu amor sendo
um só/ser tão dividido?"
Pelos poemas, passam imagens
que, se por um lado têm o clima
dos apaixonados, por outro acabam servindo, paradoxalmente,
como um antídoto para o lirismo
melado ou derramado, pois o que
poderia ser sublime logo se desarma por meio da ironia.
Um exemplo disso é "E com vocês a modernidade", que abre o livro: "Meu verso é profundamente
romântico./Choram cavaquinhos
luares se derramam e vai/ por aí a
longa sombra de rumores e ciganos./Ai que saudades que tenho
de meus negros verdes/anos!".
Sua poesia foi fortemente marcada pelo ambiente literário dos
anos 70, da chamada "poesia
marginal", da qual ele foi um dos
principais críticos e entusiastas. O
humor, a linguagem coloquial, o
verso curto, que acabaram ficando como um dos registros dessa
poesia, aparecem combinados
num aprendizado amoroso, pois
todo o livro é cuidadosamente armado em torno desse tema.
Aprendizado no qual é patente o
desencanto romântico e ingênuo.
Fala de amores presentes e passados (como na bela série sobre a
"ex-namorada", na qual se percebe a influência dos poemas amorosos de Murilo Mendes), mas
sempre pontuado por incompreensão e desencontro, pois não
há "nada mais ameaçador que os
olhos do amor". Ao mesmo tempo, é experiência revelada que
também reconhece seu fracasso,
como se lê em "Passeio no bosque": "O canivete na mão não deixa/ marcas no tronco da goiabeira// cicatrizes não se transferem".
A reedição de "Beijo na Boca"
pode ser vista hoje como o retorno de uma poesia que não poderia
ser jamais esquecida e que traz
uma lição de liberdade de criação,
principalmente agora quando
muitos se voltam para uma poesia
que se quer séria, empolada, distante da experiência cotidiana.
Como diz a orelha, trata-se de
uma obra poética que não nos suborna "com o velho lirismo torta-de-groselha das ilusões perdidas".
Cacaso foi um bom poeta e relê-lo
é sempre um grande prazer.
Heitor Ferraz é poeta e autor de "A Mesma Noite"
Beijo na Boca
Autor: Cacaso
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 12 (64 págs.)
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