São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 2002

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"HAMLET" E "ARLEQUIM"

Os espaços produtivos de Brook e Strehler

SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "Hamlet" dirigido por Peter Brook e o "Arlequim, Servidor de Dois Amos" de Giorgio Strehler, que puderam ser vistos em São Paulo na semana passada, são duas obras-primas do teatro moderno.
Ambas têm tamanhas qualidades artísticas que conseguem dificultar, por sua radical objetividade no trato da história, a relação subserviente de culto à aura artística, que costuma circunscrever as apresentações para platéias excitadas pelo fetichismo internacional da arte.
A superação artística e núcleo do incômodo causado pelo "Hamlet" liga-se a um duplo esvaziamento: da noção de "espetáculo" e da positividade da personagem.
O princípio formal do teatro como um espaço vazio a ser preenchido pela ação dos homens está desde os anos 70 no centro da prática teatral de Peter Brook. O palco nu, sem ambientação pré-determinada, deve ser ocupado com a colaboração da imaginação do espectador.
O uso desse tópico humanista do renascimento, também central na poesia de Shakespeare, fez de Brook o mais shakespeariano dos encenadores modernos.

Espaço que aprisiona
O que ocorre de novo neste "Hamlet" é que o espaço vazio, em vez de apenas libertar da cena burguesa, toda ela fundada nos ambientes, aprisiona na abstração.
Estamos diante da mesma ausência de cenários, da mesma capacidade dos atores em fazer ver o que não está presente, da mesma espacialização feita pela música, pelos ritmos do verso e dos movimentos físicos.
Mas a peça é organizada de modo a descrever uma trajetória de aprisionamento. São suprimidas as cenas ao ar livre, as encostas do castelo, a madrugada de Elsinore. A tragédia dá-se no isolamento de Hamlet.
A Dinamarca, e o mundo, se tornam a prisão da má consciência de um moço príncipe que faz o sinal da cruz porque pouco duvida do espectro e arrasta o público com ele para uma pura interioridade, que o espetáculo cria na mesma medida em que condena como vazia e abstrata, ao nos mostrar através de atuações distanciadas.
Sem a ação política que envolve a peça, sem a onipresença de Fortimbrás, o trabalho de vigília dos guardas ou a partida de Laertes, a primeira impressão que se tem é de que o sentido histórico-político do texto seria mutilado em nome de uma leitura psicologizante.
O que ocorre, porém, é um deslocamento do aspecto político, posto ao redor da reflexão ética. Balizado pelos monólogos de Hamlet, que aos poucos vão reforçando as malhas retóricas de sua prisão, o "herói" se negativiza, gira em falso, como um galo de briga sem oponente real, e vai tecendo a manhã de uma destruição estúpida, algo patética, provocada pela insuficiência da sua visão burguesa em um mundo ainda feudal.
O espetáculo deixa claro que os périplos de Hamlet podem ser compreensíveis, mas têm efeitos criminosos. Após assassinar Polônio, e satirizar a morte do velho serviçal, a luminosa autoconsciência do "ser ou não ser", aí reposicionada, muda de sentido.
Na primeira cena em que, ao público, é permitido romper com a quadratura dos volteios, estamos no cemitério, a céu aberto e diante da cova. No palco restarão dois crânios, que depois presenciarão as mortes de Rosencrantz e Guidenstern.
Na cena final, a do duelo com Laertes, é tarde demais para que a compreensão da dor alheia implique mudança do destino. Não será apenas Claudius a morrer envenenado. O virtuoso Príncipe cairá junto. Em nenhum dos trabalhos de Peter Brook, o espaço vazio se tornou tão nu e sozinho.
Sobre o "Arlequim, Servidor de Dois Amos", do Piccolo Teatro di Milano, estamos diante de uma atitude estética igualmente produtiva. É teatro que faz a mesma negação ao ambientalismo burguês, criando a história pela ação dos homens.
A formalização cênica se baseia naquela virtude que Lukács notou em Shakespeare: a recusa em enfraquecer a vida popular das cenas em favor de uma forma qualquer de classicismo.
Mas também esse maravilhoso Arlequim, feito da complexa objetividade de seu intéprete, depurada ao longo de anos, e que tanto diverte o público em seus engenhosos e vivos jogos de reação ao "patronato", demonstra politicamente o quanto está preso a forças que lhe são estranhas, alienantes e inelutáveis do ponto de vista puramente individual.
As trovoadas e fantasmagoria finais, emblemas da obscuridade que encerram essa luminosa comédia, estão ali para nos lembrar de que nenhuma redenção cai do céu para o Arlequim. São os atores que precisam acender e apagar as velas.
Strehler e Brook são artistas, ao mesmo tempo, do modernismo e do pós-guerra, quando estavam visíveis as contradições do humanismo, quando já se sabia para onde o mundo caminhava, mas não se tinha perdido a confiança ativadora em melhores realizações humanas.


Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão, professor do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp e co-autor da peça "Auto dos Bons Tratos"



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