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"HAMLET" E "ARLEQUIM"
Os espaços produtivos de Brook e Strehler
SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O "Hamlet" dirigido por
Peter Brook e o "Arlequim,
Servidor de Dois Amos" de Giorgio Strehler, que puderam ser vistos em São Paulo na semana passada, são duas obras-primas do
teatro moderno.
Ambas têm tamanhas qualidades artísticas que conseguem dificultar, por sua radical objetividade no trato da história, a relação
subserviente de culto à aura artística, que costuma circunscrever as
apresentações para platéias excitadas pelo fetichismo internacional da arte.
A superação artística e núcleo
do incômodo causado pelo
"Hamlet" liga-se a um duplo esvaziamento: da noção de "espetáculo" e da positividade da personagem.
O princípio formal do teatro como um espaço vazio a ser preenchido pela ação dos homens está
desde os anos 70 no centro da prática teatral de Peter Brook. O palco nu, sem ambientação pré-determinada, deve ser ocupado com
a colaboração da imaginação do
espectador.
O uso desse tópico humanista
do renascimento, também central
na poesia de Shakespeare, fez de
Brook o mais shakespeariano dos
encenadores modernos.
Espaço que aprisiona
O que ocorre de novo neste
"Hamlet" é que o espaço vazio,
em vez de apenas libertar da cena
burguesa, toda ela fundada nos
ambientes, aprisiona na abstração.
Estamos diante da mesma ausência de cenários, da mesma capacidade dos atores em fazer ver o
que não está presente, da mesma
espacialização feita pela música,
pelos ritmos do verso e dos movimentos físicos.
Mas a peça é organizada de modo a descrever uma trajetória de
aprisionamento. São suprimidas
as cenas ao ar livre, as encostas do
castelo, a madrugada de Elsinore.
A tragédia dá-se no isolamento de
Hamlet.
A Dinamarca, e o mundo, se
tornam a prisão da má consciência de um moço príncipe que faz o
sinal da cruz porque pouco duvida do espectro e arrasta o público
com ele para uma pura interioridade, que o espetáculo cria na
mesma medida em que condena
como vazia e abstrata, ao nos
mostrar através de atuações distanciadas.
Sem a ação política que envolve
a peça, sem a onipresença de Fortimbrás, o trabalho de vigília dos
guardas ou a partida de Laertes, a
primeira impressão que se tem é
de que o sentido histórico-político do texto seria mutilado em nome de uma leitura psicologizante.
O que ocorre, porém, é um deslocamento do aspecto político,
posto ao redor da reflexão ética.
Balizado pelos monólogos de
Hamlet, que aos poucos vão reforçando as malhas retóricas de
sua prisão, o "herói" se negativiza,
gira em falso, como um galo de
briga sem oponente real, e vai tecendo a manhã de uma destruição estúpida, algo patética, provocada pela insuficiência da sua visão burguesa em um mundo ainda feudal.
O espetáculo deixa claro que os
périplos de Hamlet podem ser
compreensíveis, mas têm efeitos
criminosos. Após assassinar Polônio, e satirizar a morte do velho
serviçal, a luminosa autoconsciência do "ser ou não ser", aí reposicionada, muda de sentido.
Na primeira cena em que, ao
público, é permitido romper com
a quadratura dos volteios, estamos no cemitério, a céu aberto e
diante da cova. No palco restarão
dois crânios, que depois presenciarão as mortes de Rosencrantz e
Guidenstern.
Na cena final, a do duelo com
Laertes, é tarde demais para que a
compreensão da dor alheia implique mudança do destino. Não será apenas Claudius a morrer envenenado. O virtuoso Príncipe
cairá junto. Em nenhum dos trabalhos de Peter Brook, o espaço
vazio se tornou tão nu e sozinho.
Sobre o "Arlequim, Servidor de
Dois Amos", do Piccolo Teatro di
Milano, estamos diante de uma
atitude estética igualmente produtiva. É teatro que faz a mesma
negação ao ambientalismo burguês, criando a história pela ação
dos homens.
A formalização cênica se baseia
naquela virtude que Lukács notou
em Shakespeare: a recusa em enfraquecer a vida popular das cenas em favor de uma forma qualquer de classicismo.
Mas também esse maravilhoso
Arlequim, feito da complexa objetividade de seu intéprete, depurada ao longo de anos, e que tanto
diverte o público em seus engenhosos e vivos jogos de reação ao
"patronato", demonstra politicamente o quanto está preso a forças que lhe são estranhas, alienantes e inelutáveis do ponto de vista
puramente individual.
As trovoadas e fantasmagoria finais, emblemas da obscuridade
que encerram essa luminosa comédia, estão ali para nos lembrar
de que nenhuma redenção cai do
céu para o Arlequim. São os atores que precisam acender e apagar as velas.
Strehler e Brook são artistas, ao
mesmo tempo, do modernismo e
do pós-guerra, quando estavam
visíveis as contradições do humanismo, quando já se sabia para
onde o mundo caminhava, mas
não se tinha perdido a confiança
ativadora em melhores realizações humanas.
Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão, professor do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp e
co-autor da peça "Auto dos Bons Tratos"
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